Leia o texto a seguir para responder à questão.
TEXTO
A ARTE DE ESCUTAR BONITO
Mirian Goldenberg
Antropóloga e professora da UFRJ
Desde que a pandemia começou, tive (e continuo
tendo) várias fases de depressão, pânico, ansiedade,
desespero, tristeza e desesperança. Ainda não consegui
encontrar uma saída da concha ou da caverna escura em
que me escondi nos últimos dois anos.
Foram os meus amigos e os meus livros que me
ajudaram a sobreviver física e emocionalmente nos piores
momentos. Decidi relembrar aqui algumas lições que
aprendi em meio a essa tragédia para ajudar quem está
precisando de um colete salva vidas ou de um abraço
carinhoso, como eu ainda preciso.
Viktor Frankl me desafiou a construir uma vida
com significado. Apesar das circunstâncias dramáticas,
ninguém pode destruir a liberdade que temos de escolher
a melhor atitude para enfrentar o sofrimento
inevitável. Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre me
mostraram que não importa o que a vida fez de nós: o que
importa é o que fazemos com o que a vida fez de nós,
quais são os nossos propósitos e projetos de vida.
Epicteto me mostrou que a nossa felicidade e
liberdade começam com a compreensão de um princípio
básico: algumas coisas estão sob nosso controle e outras,
não. Devemos sempre fazer o máximo e o melhor que
estiver ao nosso alcance. Cada obstáculo pode ser
encarado como uma oportunidade para descobrirmos a
nossa coragem desconhecida e para encontrarmos o nosso
potencial escondido. As provações que suportamos podem
revelar quais são as nossas forças e fraquezas. [...]
Clarice Lispector me mostrou que os nossos piores
defeitos podem estar sustentando o edifício inteiro. Ao
aceitar as nossas limitações, em vez de lutar contra elas, a
gente se torna livre. Com Clarice, desisti de lutar contra as
minhas angústias, ansiedades, inseguranças, vergonhas,
culpas, obsessões, medos e tristezas, e passei a olhar com
mais carinho para a Olívia Palito que se escondia no
armário para fugir da violência, gritos e surras do pai e
irmãos.
A minha história familiar me tornou a mulher que
escreve compulsivamente para, como Clarice, salvar as
vidas dos meus amores e salvar a minha própria vida.
Quem eu seria hoje se não tivesse sobrevivido como uma
formiguinha com medo de ser esmagada?
Rubem Alves me revelou que ostras felizes não
fazem pérolas: é a ostra triste que, para se proteger do
grão de areia que machuca, produz as mais belas pérolas.
Ele também me ensinou "a arte de escutar bonito", uma
arte que só valorizamos em meio ao sofrimento, dor e
angústia existencial.
Já contei aqui que o meu maior arrependimento é
não ter aprendido a "escutar bonito" meus pais para
compreender melhor a minha própria história. Tento
compensar esse vazio existencial "escutando bonito" meus
amigos nonagenários. [...]
Meu melhor amigo Guedes, de 98 anos, me
ensinou: "Tem que ter coragem, Mirian, coragem". Ele
nunca me deixa desistir quando me sinto impotente,
apavorada e sem força para continuar. Sem ele, eu não
teria conseguido enfrentar a depressão, o desespero e o
pânico que senti em vários momentos.
Todos os dias às 18h30, desde o primeiro dia da
pandemia, ele telefona para mim: conversamos, rimos,
lemos, cantamos, brincamos com as palavras e
aprendemos juntos a "escutar bonito". A nossa amizade é
o mais belo presente que ganhei da vida, um tesouro que
nenhum egoísta, vampiro ou odiador de plantão
conseguirá destruir.
São essas pequenas doses de amor que me dão
coragem para continuar escrevendo, estudando e
escutando bonito. São essas pequenas epifanias que me
socorrem nos momentos em que, como escreveu Clarice,
eu acho que tudo o que eu faço com tanta paixão "é
pouco, é muito pouco".
Adaptado https://www1.folha.uol.com.br