TEXTO PARA A QUESTÃO.
A última conferida
Paulo Pestana
Crônica
“Para o cemitério, só vou se for levado – e na
horizontal”, me diz um amigo, pragmático, depois de ter
sido constrangido por outro camarada com o pior tipo de
pergunta que se pode fazer, aquela que traz, antes da
interrogação, uma afirmação. É de perder o rebolado.
“Não te vi no cemitério, a que horas você esteve lá?”.
Ele não se deu o trabalho de usar a frase anterior
porque sentiu que seria pior, teria que se estender. Teria
que dizer que não é superstição, mas porque não vê
sentido nessas cerimônias de despedida; mas era muita
explicação, exigiria alguma filosofia e muita paciência e ele
preferiu se escorar em mim para mudar o rumo da prosa.
Falamos de futebol.
A tradição manda que a gente vá dar uma
conferida final naquele parente, amigo ou camarada que
se foi, mas eu também evito. Gosto de lembrar das
pessoas vivas e não me sinto à vontade naquele quase
convescote em que as pessoas falam de amenidades em
torno de um corpo inerte, cercado por flores à espera de
ser carregado para a cova.
Lembro sempre a história de Ulysses Guimarães, o
Senhor Diretas, que nunca ia a enterros e acabou não indo
nem ao próprio, já que o corpo dele nunca foi encontrado
e, há 30 anos, continua mergulhado no Oceano Atlântico.
Um outro amigo é tão supersticioso que sequer
fala a palavra cemitério. Como se fosse adiantar alguma
coisa, prefere usar campo santo, necrópole ou, mais
frequentemente, até porque é descendente de libaneses,
almocábar, que obviamente é uma palavra de origem
árabe. Não sei se a semântica resolve alguma coisa, mas
para ele ameniza. E ficamos assim.
Saber que não se vai mais encontrar um amigo ou
mesmo um conhecido já é dor suficiente. Não é preciso
dividi-la com parentes e outros presentes. Há quem alegue
que só uma cerimônia fúnebre é capaz de encerrar uma
história de convivência e que seria a última oportunidade
de dar um adeus a um querido. Só que o querido não está
mais ali, só há um corpo.
O homem enterra seus semelhantes desde 60 mil
anos antes de Cristo, pelo menos. Inicialmente era um
modo de esconder os corpos de animais predadores. Mais
tarde, egípcios mantinham conservados os corpos da gente
importante e os romanos começaram a cremar, mas só
gente de bem; os bandidos eram enterrados mesmo.
Até recentemente – 1964 – a Igreja Católica
proibia a cremação de fiéis, mas os vikings faziam
cerimônias em que misturavam fogo e água para
carbonizar guerreiros e nobres num barco, a caminho de
Valhala.
Os velórios só foram instituídos na idade média
para resolver o problema de enterrar gente viva – como as
pessoas bebiam vinho e outros espíritos em taças de
estanho, muitas vezes chegavam a um estado de
narcolepsia que era confundido com morte. E decidiu-se
esperar um pouco mais antes de botar terra em cima.
Hoje, os velórios são solenidades para os vivos;
um outro amigo, mais vivido, tem uma explicação mais
direta sobre o fato de evitar cemitérios: “Quem não é visto
não é lembrado”.
PESTANA, Paulo. A última conferida. Correio Braziliense, 31 de maio de
2023. Disponível em:
https://blogs.correiobraziliense.com.br/paulopestana/a-ultimaconferida/. Acesso em: 17 jun. 2023.