Não vai dar tempo
Paulo Pestana
Crônica
O mundo anda com muita pressa. Não bastasse
ouvir os recados deixados no telefone com rotação
acelerada para ganhar parcos segundos, agora a onda é
ouvir música em velocidade mais rápida. Isso mesmo: o
pessoal está com urgência que a música acabe.
O artista gasta fosfato e talento – alguns nem
tanto – para fazer uma canção e o gaiato do ouvinte agora
está alterando o andamento _______ tem o cérebro
pedindo pé embaixo.
Ritmos vêm sendo acelerados há tempo, mas
pelos artistas, não pelos ouvintes. O blues virou rock, que
virou uma massa sonora difícil de ser catalogada; o samba
cadenciado dos desfiles das escolas foi tão apressado que
virou uma marcha, com pouco espaço para a evolução dos
passistas. São mudanças que o tempo trouxe.
Mas o que ocorre agora com a tecnologia e a
compressão é uma interferência direta na obra. Os
serviços de streaming ainda não oferecem a opção de se
ouvir música acelerada, mas não vai demorar.
Ainda bem que tem gente que gosta de andar na
contramão. Aos 82 anos de idade, o cantor e compositor
Paul Simon está lançando um disco com uma suíte, faixa
única de 33 minutos e dois segundos, dividida em sete
partes. Chama-se Seven Psalms e é um convite à reflexão
sobre mortalidade e espiritualidade que não combina com
essa pressa toda.
Autor de clássicos inescapáveis da música popular
– The Sound of Silence, Bridge Over Troubled Waters, entre
tantos – Simon obriga que o ouvinte atravesse toda a obra
desde o início, já que não há separação de faixas. Há uma
delicadeza que cobra tempo de quem ouve, como a
lembrar Drummond, que a vida necessita de pausas.
A pressa não é exclusiva dos ouvidos. Já faz algum
tempo que versões reduzidas de grandes romances são
oferecidas a quem tem preguiça de enfrentar[,] por
exemplo[,] as 1.544 páginas da tradução brasileira de
Guerra e Paz, de Tolstoi. Não são as famosas condensações
de livros que as Seleções de Reader’s Digest publicam há
101 anos (81 no Brasil) com linguagem simplificada e
narrativa resumida para facilitar a[,] digamos[,] digestão.
Agora é radical: as 3.938 páginas de Em Busca do
Tempo Perdido, de Proust, estão resumidas em apenas 30
linhas. E o sujeito sai achando que pegou tudo. O mesmo
ocorre com Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes
(1.328 páginas), Os Miseráveis, de Vitor Hugo (1.912), O
tempo e o Vento, de Érico Veríssimo (2.832) ou qualquer
obra que exija disposição intelectual e bíceps bem
preparados – tudo registrado em algumas linhas.
Já estamos quase na metade do ano que começou
ainda outro dia, o que dá uma sensação de urgência em
tudo o que nos cerca. Viramos Lebre de Março, o coelho
do País das Maravilhas, de Carroll, sempre com um
enorme relógio das mãos, “dois dias” atrasado e para
quem o eterno dura às vezes apenas um segundo.
Não adianta, não vai dar tempo de fazer tudo. É
melhor ler 49 resumos de livros do que um romance
inteiro? Ouvir três músicas no espaço que teríamos para
ouvir uma? Ou apertar a tecla FF (ainda existe?) para
acelerar a reprodução de um filme?
Mas se você chegou até aqui é bom saber que
gastou sete minutos para ler esse texto.
PESTANA, Paulo. Não vai dar tempo. Correio Braziliense, 21 de junho de
2023. Disponível em: https://blogs.correiobraziliense.com.br/paulopestana/nao-vai-dartempo/. Acesso em: 22 jun. 2023. Adaptado.