Carnaval de trazer por casa
Quinze dias antes já os olhos se colavam aos pés, com
medo de uma queda que acabasse com o Carnaval. Subíamos
e descíamos as escadas, como quem pisa algodão. [...] Nós
éramos todas meninas. Tínhamos a idade que julgávamos ser
eterna. Sonhávamos com os cinco dias mais prometidos do
ano. A folia começava sexta-feira e só terminava terça quando
as estrelas iam muito altas. Havia o cheiro das bombinhas
que tinham um odor aproximado ao dos ovos podres e que
se misturava com o pó do baile que se colava aos lábios. Que
se ressentiam vermelhos de dor. Havia o cantor esganiçado
em palco a tentar a afinação, que quase nunca conseguia: [...]
Depois os bombos saíam à rua, noite fora, dia adentro. [...] E na
noite que transformava o frio do inverno no calor do Carnaval,
eu tinha a certeza de que aquele som dos bombos fazia parte
do meu código genético. E que o Carnaval ia estar sempre
presente nas ruas estreitas da minha aldeia, assim, igual a
si próprio, com os carros de bois a chiar pelas ruas, homens
vestidos de mulheres com pernas cheias de pelos, mulheres
vestidas de bebês, o meu pai vestido de François Mitterrand e
eu com a certeza de que o mundo estava todo certo naqueles
cinco dias, na minha aldeia.
O outro, o que via nas televisões, não era meu.
(FREITAS, Eduarda. Revista Carta Capital. Disponível em: http://
www.cartacapital.com.br/sociedade/carnaval-de-trazer-por-
casa/?autor=40.
Acesso em set. 2016.)