Texto
Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos
chutava tudo o que achava. [...] Não sei quando começou em
mim o gosto sutil. [...]
Chutar tampinhas que encontro no caminho. É só ver a
tampinha. Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela
ou aquela outra. Qual a marca (se estiver de cortiça para
baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma
gingada, e quase já controlei tudo. [...] Errei muitos, ainda erro.
É plenamente aceitável a ideia de que para acertar, necessário
pequenas erradas. Mas é muito desagradável, o entusiasmo
desaparecer antes do chute. Sem graça.
Meu irmão, tino sério, responsabilidades. Ele, a camisa;
eu, o avesso. Meio burguês, metido a sensato. Noivo...
- Você é um largado. Onde se viu essa, agora! [...]
Cá no bairro minha fama andava péssima. Aluado, farrista,
uma porção de coisas que sou e que não sou. Depois que
arrumei ocupação à noite, há senhoras mães de família que já
me cumprimentaram. Às vezes, aparecem nos rostos sorrisos
de confiança. Acham, sem dúvida, que estou melhorando.
- Bom rapaz. Bom rapaz.
Como se isso estivesse me interessando...
Faço serão, fico até tarde. Números, carimbos, coisas chatas.
Dez, onze horas. De quando em vez levo cerveja preta e
Huxley. (Li duas vezes o “Contraponto” e leio sempre). [...]
Dia desses, no lotação. A tal estava a meu lado querendo
prosa. [...] Um enorme anel de grau no dedo. Ostentação
boba, é moça como qualquer outra. Igualzinho às outras, sem
diferença. E eu me casar com um troço daquele? [...] Quase
respondi...
- Olhe: sou um cara que trabalha muito mal. Assobia sambas
de Noel com alguma bossa. Agora, minha especialidade,
meu gosto, meu jeito mesmo, é chutar tampinhas da rua. Não
conheço chutador mais fino.
(ANTONIO, João. Afinação da arte de chutar tampinhas. In: Patuleia:
gentes de rua. São Paulo: Ática, 1996)
Vocabulário:
Huxley: Aldous Huxley, escritor britânico mais conhecido por
seus livros de ficção científica.
Contraponto: obra de ficção de Huxley que narra a destruição
de valores do pós-guerra na Inglaterra, em que o trabalho e a
ciência retiraram dos indivíduos qualquer sentimento e vontade
de revolução.