Texto I
Maria-Nova ouvia a história que Bondade
contava e, por mais que quisesse conter a emoção, não
conseguia. Hora houve em que ele percebeu e se calou
um pouco. Calou-se também com um nó na garganta,
pois sabido é que Bondade vivia intensamente cada
história que narrava, e Maria-Nova, cada história que
escutava. Ambos estão com o peito sangrando. Ele
sente remorsos de já ter contato tantas tristezas para
Maria-Nova. Mas a menina é do tipo que gosta de pôr
o dedo na ferida, não na ferida alheia, mas naquela que
ela traz no peito. Na ferida que ela herdou de Mãe
Joana, de Maria-Velha, de Tio Totó, do Louco Luisão
da Serra, da avó mansa, que tinha todo o lado direito
do corpo esquecido, do bisavô que tinha visto os sinhôs
venderem Ayaba, a rainha. Maria-Nova, talvez, tivesse
o banzo1 no peito. Saudades de um tempo, de um lugar,
de uma vida que ela nunca vivera. Entretanto o que
doía mesmo em Maria-Nova era ver que tudo se
repetia, um pouco diferente, mas, no fundo, a miséria
era a mesma. O seu povo, os oprimidos, os miseráveis;
em todas as histórias, quase nunca eram os
vencedores, e sim, quase sempre, os vencidos. A ferida
dos do lado de cá sempre ardia, doía e sangrava muito.
(EVARISTO, Conceição. Becos da Memória.
Rio de Janeiro: Pallas, 2017)
1 para os escravizados, era como se chamava o sentimento de
melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da
liberdade