A CULTURA DA EVOLUÇÃO LIVRE
Publicado em Revista Língua Portuguesa, ano 9, n.º 102, abril de 2014.
Disponível em: http://www.aldobizzocchi.com.br/divulgacao.asp
Acesso em: 28 mar 2017.
Por muitos séculos, um desvio da norma gramatical
foi considerado um erro e ponto final. A sociedade dividiase,
portanto, entre os que sabiam falar a própria língua e os
que não sabiam.
Com o advento da linguística evolutiva, da
sociolinguística e sobretudo dos estudos de William Labov
sobre variação, o chamado erro gramatical passou a ser
visto como um fato natural da linguagem. Remonta, por
sinal, aos linguistas histórico-comparativos do século 19 o
lema de que o erro de hoje poderá ser a norma gramatical
de amanhã.
No entanto, essa visão mais benevolente do desvio
levou em alguns casos a uma confusão entre erro e
evolução: o desvio pode vir a tornar-se norma, mas não
necessariamente se tornará. Como numa reação contra
séculos de doutrinação gramatical e estigmatização da fala
dos menos instruídos, alguns teóricos passaram
equivocadamente a supervalorizar o erro e a relativizar a
importância da língua padrão.
Acontece que a dinâmica da evolução linguística é
mais complexa do que parece à primeira vista. A língua se
apoia numa tensão dialética entre a conservação e a
mudança: a todo momento, por força do próprio uso, algo
muda na língua, mas a maior parte de seus elementos se
conserva. Se nada mudasse, a língua seria estática, a fala
ficaria “engessada”, e o sistema rapidamente rumaria para
a obsolescência; se tudo mudasse o tempo todo, ninguém
mais se entenderia.
As forças da conservação e da mudança travam
uma queda de braço permanente: toda inovação, seja ela
lexical, sintática ou semântica, gera uma nova forma que
tem de competir com as já existentes. Essa luta pode se
arrastar por décadas ou séculos. Ao final, a forma inovadora
pode derrotar as até então estabelecidas, assim como pode
acabar derrotada por elas, isto é, abandonada, como é o
caso de muitas gírias efêmeras.
[...] a fala popular, assim como as línguas ágrafas
e os dialetos, evolui de modo livre; já as chamadas línguas
de cultura (dotadas de escrita formal) estão sujeitas à
engenharia genética operada por escritores, jornalistas,
intelectuais, gramáticos e professores.
[...] Em resumo, o desvio da norma, incluindo o
chamado erro gramatical, não é bom nem mau – nem uma
evidência da inferioridade intelectual do povo nem um
instrumento de luta contra as classes dominantes –, é
apenas um fato natural a ser estudado cientificamente.
Aldo Bizzocchi é doutor em Linguística pela USP, pós-doutor pela
UERJ, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da
Língua Portuguesa da USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa
Ocidental (Annablume) e Anatomia da Cultura (Palas Athena).