Texto I
O gigolô das palavras
Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do
Farroupilha estiveram lá em casa numa missão,
designada por seu professor de Português: saber se
eu considerava o estudo da Gramática
indispensável para aprender e usar a nossa ou
qualquer outra língua. Cada grupo portava seu
gravador cassete, certamente o instrumento vital da
pedagogia moderna, e andava arrecadando
opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia
esta coluna, se descabelava diariamente com as
suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela
oportunidade para me desmascarar. Já estava até
preparando, às pressas, minha defesa (“Culpa da
revisão! Culpa a revisão!”). Mas os alunos
desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles
mesmos tinham escolhido os nomes a serem
entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram
o Veríssimo errado? Não. Então, vamos em frente.
Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é
um meio de comunicação e que deve ser julgada
exclusivamente como tal. Respeitadas algumas
regras básicas da Gramática, para evitar os
vexames mais gritantes, as outras são
indispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso,
não de princípios. Escrever bem é escrever claro,
não necessariamente certo. Certo? O importante é
comunicar. (E quando possível, surpreender,
iluminar, divertir, comover... Mas aí entramos na
área do talento, que também não tem nada a ver
com Gramática). A Gramática é o esqueleto da
língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de
interesse restrito a necrólogos e professores de
Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela
sombria gravidade que a gente nota nas fotografias
em grupo dos membros da Academia Brasileira de
Letras é de reprovação pelo Português ainda estar
vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o
Português morra para poderem carregar o caixão e
escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que
nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada,
como a Gramática é a estrutura da língua, mas
sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias
conversam entre si em Gramática pura.
Claro que não disse tudo isso para meus
entrevistadores. E adverti que minha implicância
com a Gramática na certa se devia à minha pouca
intimidade com ela. Sempre fui péssimo em
português. Mas – isto eu disse – vejam vocês, a
intimidade com a Gramática é tão dispensável que
eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total
inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras.
Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar
conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só
uso as que eu conheço, as desconhecidas são
perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo
submissão. Não raro, peço delas flexões
inomináveis para satisfazer um gosto passageiro.
Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo
dominar por elas. Não me meto na sua vida
particular. Não me interessa seu passado, suas
origens, sua família nem o que os outros já fizeram
com elas. Se bem que não tenha também o mínimo
de escrúpulo em roubá-las de outro, quando acho
que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem
na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de
baixíssimo calão. Não merecem um mínimo de
respeito.
Um escritor que passasse a respeitar a intimidade
gramatical das suas palavras seria tão ineficiente
quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu
plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de
um namorado ou com a tediosa formalidade de um
marido. A palavra seria sua patroa! Com que
cuidados, com que temores e obséquios ele
consentiria em sair com elas em público, alvo da
impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e
colegas? Acabaria impotente, incapaz de uma
conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os
dias para saber quem é que manda.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. O gigolô das
palavras. In: LUFT, Celso Pedro. Língua e
Liberdade. 4. ed. São Paulo: Ática, 1995. p. 14-15.