“AO CABO DO MUNDO”: NO INÍCIO ERA O CÉU E A TERRA
"Neste mesmo dia, à hora das vésperas, avistamos terra! ”: era o dia 22 de abril de 1500, e um monte alto e redondo acusou
solo novo no Atlântico meridional. Para os homens habituados a velejar ao Norte do equador, o céu azul substituiu o esbranquiçado
dos outonos e invernos. Em lugar dos campos cultivados, a capa verde da mata se espreguiçava ao longo das praias. O sol dourava a
pele, em vez do astro frio que, salvo no verão, mal esquentava os corpos. Pássaros coloridos cruzavam os ares com sua música,
diversa do grito estridente das aves marinhas. Do interior da massa verde de troncos e folhas se ouviam silvos, urros, sons de animais
desconhecidos. A beleza da paisagem, que mais parecia uma visão do paraíso, interpelava os recém-chegados.
No aconchego do abrigo mais tarde batizado de baía Cabrália, as caravelas deixavam para trás a fronteira entre o medo e a
miragem: o Atlântico. Um caminho de águas que transportava homens, armas e mercadorias a serviço da ambição da monarquia
católica de encontrar uma passagem para as cobiçadas Índias. Mas seria mesmo nova a terra que se avistava? Certamente não. Os
espanhóis já conheciam suas regiões ao Norte, e é de se perguntar quantas vezes emissários de D. João II, filho de D. Henrique, o
Navegador, depois de chegar à Madeira e aos Açores, não teriam se aproximado das costas brasileiras. À sua maneira, os portugueses
dominavam a extensão, a cor e as vozes do mar que os convidava a olhar além do horizonte. E agora, superadas as dificuldades da
viagem, eram recompensados pela atração do sol, da luminosidade e… do lucro possível.
No início, para os aqui desembarcados, não era o Verbo, mas sim o nada. Apenas matas, medo e solidão. E um vasto litoral,
desconhecido, que mais ameaçava do que acolhia. Um espaço aparentemente desabitado – a palavra já existia e designava o locus
desérticos –, o lugar sem viva alma. Além das praias, o desconhecido gentio: escondido, armado e perigoso – e que, na maior parte
das vezes, podia receber estranhos com uma chuva de flechas. E no interior, terras incultas, cobertas de densas matas, difíceis de
trabalhar. Frente à paisagem infinita, pairava a pergunta que lançara os portugueses à aventura ultramarina: que extraordinárias
oportunidades os aguardavam?
Nada se sabia sobre os habitantes dessa terra ensolarada. Seria gente como eles ou criaturas estranhas, bizarras,
desnaturadas? Como adentrar essa terra desconhecida, que ultrapassava a imaginação e provocava ao mesmo tempo angústias e
exaltação? Acreditava-se, então, na existência de povos desconhecidos, descritos em relatos de outras viagens, mas também saídos
de imagens que a tradição supunha existir nos confins da Terra. O Paraíso Terreal teria ali sua porta de entrada? Encontrariam, por
acaso, a temida Mantícora, fera da Índia, forte como um tigre, gulosa de carne humana? Mulheres barbadas, que portavam pedras
preciosas nos olhos e cauda que lhes saía do umbigo? Altas montanhas de ouro guardadas por formigas, grandes como cachorros?
Vales perdidos, onde se ouvia o ruidoso barulho das hostes demoníacas? Não se podia duvidar de nada. Afinal, o próprio Santo
Agostinho dissera que Deus enchera céus e terras de inúmeros milagres e raças monstruosas, guardiãs das Portas do Éden.
Ao olharem a imensidão desconhecida, os viajantes nelas projetavam informações que circulavam o Ocidente cristão.
Sonhavam sonhos de riquezas, como as que sabiam existir nas Índias Orientais: pedras preciosas, sedas, madeiras raras, chá, sal e
especiarias. Ideavam cidades de ouro e prata, pois nomes como Ofir e Cipango circulavam, embora as minas sul-americanas só tenham
sido descobertas em 1520. Presumiam crescer a preciosa pimenta ou a noz-moscada, iguais às do Oriente, descrito por Marco Polo,
mas temiam também só encontrar doença, fome e morte. Sob temperaturas amenas, deviam se lembrar das palavras de São
Boaventura, que informava Deus ter situado o paraíso junto à região equinocial, região de “temperança de ares”. Ou aquelas de São
Tomás, mais incisivo ainda: o jardim ameno estaria na zona tórrida para o sul. Seria ali? Afinal, o sonho e a ambição sempre tiveram
parte nas viagens ultramarinas.
PRIORE, MARY DEL. Histórias da gente brasileira: volume I: colônia. São Paulo: LeYa, 2016.