Leia o texto abaixo para responder à questão.
Erasmo Carlos seguiu jovem e entendeu a vida
melhor que a gente
Erasmo era um menino. Atendia o telefone fazendo voz de
velhinha, dizendo que o Erasmo não estava —até identificar o
interlocutor. Se fosse alguém íntimo, ele logo mudava de voz e
se "revelava". Se não fosse íntimo, mas ainda assim alguém que
ele queria ou precisava atender, ele dizia que ia chamar o Erasmo
—e voltava na sequência, num teatro no qual o interlocutor fingia
acreditar. Por fim, se fosse alguém que ele não queria atender, ele
seguia como velhinha até o fim, dizendo que ia "anotar o recado".
Erasmo era um menino. Tinha flâmulas e escudos do Vasco
espalhados em seu escritório. No mesmo espaço, tinha um braço
falso pendurado saindo da porta de sua estante, como aqueles que
meninos prendem nos porta-malas. Fazia graça com os
esqueletos de seu armário, esses que todos temos e fingimos não.
Erasmo era um menino. "Minha Fama de Mau", livro no
qual trabalhamos juntos, testemunha isso em seus relatos. Tudo
é visto por ele com um olhar de pureza desprotegida para o
encanto da existência, desses que só meninos. O prazer com que
conta travessuras da infância —como mexer no letreiro do
cinema da Tijuca para gerar palavras inocentemente indecentes
—parece ser o mesmo que ele sentiu quando as realizou.
Erasmo era um menino. Está lá o deslumbre sincero e de
peito aberto de garoto suburbano de estudo limitado frente à
exuberância musical e intelectual da bossa nova e da Tropicália
e de Milton Nascimento. Assim como a fé no amor como
condição inerente à pele, que se manteve fina, imune aos calos
que costumam engrossá-la como resposta às porradas inevitáveis
da vida —não atoa, seguiu apaixonando-se e apaixonado até o
fim, como menino.
Erasmo era um menino. Passou a vida escrevendo versos
que eram a depuração do menino que tinha que manter a fama de
mau ao mesmo tempo em que não queria mais conversa com
quem não tem amor.
Erasmo era um menino. E eu achava isso lindo demais, um
feito existencial admirável. Era isso que eu queria dizer pra ele,
sem saber como, quando o presenteei certa vez num aniversário
com um DVD de "Flash Gordon" —o seriado dos anos 1930 que
passava por aqui em cinemas como os da Tijuca de sua meninice.
Erasmo era um menino. Tanto que se permitia às vezes,
como menino, olhar para o horizonte. Lembro de Erasmo assim
ao ouvir uma pergunta que Chico Buarque mandou para ele para
uma reportagem que fiz por ocasião do lançamento do "Erasmo
Carlos Convida - Volume 2", de 2007. Pedi a todos os
convidados do disco uma pergunta para repassar ao anfitrião.
Chico, gaiato, apenas pôs uma interrogação no primeiro verso de
"Olha", que ele havia gravado em dueto com o Tremendão para
o disco: "Olha, você tem todas as coisas?". Ao ouvir, Erasmo
ficou sério: "Não, não tenho não [pensativo]. Eu posso dizer que
não tenho todas as coisas e...[olhou pela janela, sério, e ficou
calado por um minuto] nunca vou ter. Ninguém tem."
Erasmo era um homem. E entendeu tudo.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/11/erasmo-carlos-seguiujovem-e-entendeu-a-vida-melhor-que-a-gente.shtml. Acessado em
23/11/2022. Adaptado.