Fazer nada
Como a visita de um pássaro nos fez pensar no tempo.
Conseguimos uns dias de folga e fomos passar um
tempo cuidando um do outro. No hotel, em Itatiba,
deram-nos o quarto 37, que se abre para um mar de morros
verdes, com plantações, pastos, florestas. Fica no piso
superior, tem pé-direito alto e uma varanda abraçada por
árvores repletas de pássaros. À noite, entrou pela janela um
passarinho. Minúsculo, branco no peito e na parte inferior
da face, preto no dorso e na metade de cima da cabeça.
Entrou pelo quarto, acelerado. Voava junto ao teto e não
conseguia baixar até a altura da porta por onde havia
entrado. Temíamos que se machucasse. Apagamos as luzes.
Ele se acalmou e parou para descansar no toucador. Pulou
em pé, no chão. Caminhou um pouco, ofegante. Usamos
um chapéu para levá-lo à varanda, onde ficou ainda um
tempo, refazendo-se.
Depois, vimos que deixou de lembrança um cocozinho
na nossa cama. De onde teria vindo essa ave? Qual o
significado do carimbo de passarinho sobre o lençol? Resisti
à ideia de lembrar que excremento de pássaro é sinal de
boa fortuna em antigas tradições. Augúrio? Sinal? Ali não
havia mistério. Era apenas um bichinho assustado,
acelerado demais. Talvez apenas apavorado por haver
entrado em um lugar de onde parecia impossível sair. Mais
do que um significado oculto, sua visita pode é nos inspirar,
quem sabe, uma analogia. Quantas vezes o homem não se
debate, na ilusão de que está acuado? Quantas vezes sofre
sem perceber que está saturado por estímulos que ele
próprio foi buscar? A sensação de que seu tempo é
estrangulado, sem se dar conta de que é ele quem cultiva
desassossego para si. Um amigo, sobrinho de um sábio do
interior, costuma usar a imagem da trajetória errática e vã
das formigas para ilustrar a ilusão que acomete o homem
em movimentos inócuos e sem sentido, o esforço inútil.
Não é à toa que se fale tanto na necessidade de ir com mais
calma.
Afinal, nós nunca aceleramos tanto. Na ilusão de
anteciparmos o futuro, roubamos o momento seguinte e
deixamos de vivê-lo. Convivemos sem prestar atenção no
outro, respiramos com sofreguidão, comemos sem sentir o
sabor. Fugimos do presente, o único tempo que existe e
sobre o qual criamos a referência para um passado
reconstruído na memória e um futuro sonhado. Como parar
e fazer nada? Como apenas ser, sem se debater por ter
entrado em uma porta estranha? Há quem não consiga
relaxar e, simplesmente, fazer nada. Alguém já disse que
fazer nada não é a completa falta de ação, mas a ação feita
com desapego, sem visar resultado para si mesmo. Há algo
de bom em atingir esse momento em que só se é parte da
paisagem e não um observador separado. Se ainda
quiséssemos procurar um significado para a visita da pequena ave, poderíamos dizer que ela veio trazer o tema
para estas linhas que você lê agora. Como se nos dissesse:
que bom que vocês conseguiram uns dias de folga e vieram
aqui, cuidar um do outro. Sejam bem-vindos a este momento
e esqueçam o resto. Fui.
(NOGUEIRA, Paulo. Vida Simples, ed. 37. São Paulo: Abril, 2006.
Disponível em http://mdemulher.abril.com.br/revistas/vidasimples/.
Edições/037/caminho/conteúdo_237474.shtml. Acesso em:
13/07/2019.)