Os trovões de antigamente
Estou no antigo quarto de meus pais; as duas janelas dão
para o terreno onde fica o imenso pé de fruta-pão, à cuja sombra
cresci. O desenho de suas folhas recorta-se contra o céu; essa
imagem das folhas do fruta-pão recortada contra o céu é das
mais antigas de minha infância, do tempo em que eu ainda dormia em uma pequena cama cercada de palhinha junto à janela
da esquerda.
A tarde está quente. Deito-me um pouco para ler, mas
deixo o livro, fico a olhar pela janela. Lá fora, uma galinha
cacareja, como antigamente. E essa trovoada de verão é tão
Cachoeiro, é tão minha casa em Cachoeiro! Não, não é verdade que em toda parte do mundo os trovões sejam iguais.
Aqui os morros lhe dão um eco especial, que prolonga seu
rumor.
A altura e a posição das nuvens, do vento e dos morros
que ladeiam as curvas do rio criam essa ressonância em que
me reconheço menino, ajustado e fascinado pela visão dos relâmpagos, esperando a chegada dos trovões e depois a chuva
batendo grossa lá fora, na terra quente, invadindo a casa com
o seu cheiro. Diziam que São Pedro estava arrastando móveis,
lavando a casa; e eu via o padroeiro de nossa terra, com suas
barbas empurrando móveis imensos, mas iguais aos de nossa
casa, no assoalho do céu – certamente também feito assim,
de tábuas largas. Parece que eu não acreditava na história,
sabia que era apenas uma maneira de dizer, uma brincadeira,
mas a imagem de São Pedro de camisolão empurrando um
grande armário preto me ficou na memória.
Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão
e o jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente
de alguns canteiros, algumas flores e folhagens desse jardim
que não existe mais; especialmente de uma grande touceira
de espadas de São Jorge que a gente chamava apenas de “talas”;
e, lá no fundo, o precioso pé de saboneteira que nos fornecia
bolas pretas para o jogo de gude.
Quando começavam as chuvas a gente ia toda manhã lá
no quintal deles ver até onde chegara a enchente. As águas
barrentas subiam primeiro até a altura da cerca dos fundos,
depois às bananeiras, vinham subindo o quintal, entravam pelo
porão. Mais de uma vez, no meio da noite, o volume do rio
cresceu tanto que a família defronte teve medo.
Então vinham todos dormir em nossa casa. Isso para nós
era uma festa, aquela faina de arrumar camas nas salas, aquela
intimidade improvisada e alegre. Parecia que as pessoas ficavam todas contentes, riam muito; como se fazia café e se tomava café tarde da noite! E às vezes o rio atravessava a rua,
entrava pelo nosso portão, e me lembro que nós, os meninos,
torcíamos para ele subir mais e mais. Sim, éramos a favor da
enchente, ficávamos tristes de manhãzinha quando, mal saltando da cama, íamos correndo para ver que o rio baixara um
palmo – aquilo era uma traição, uma fraqueza do Itapemirim.
Às vezes chegava alguém a cavalo, dizia que lá para cima, pelo
Castelo, tinha caído chuva muita, anunciava água nas cabeceiras, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez
crescer, queríamos sempre que aquela fosse a maior de todas
as enchentes.
E naquelas tardes as trovoadas tinham esse mesmo ronco
prolongado entre morros, diante das duas janelas do quarto de
meus pais; eles trovejavam sobre nosso telhado e nosso pé de
fruta-pão, os grandes, grossos trovões familiares de antigamente, os bons trovões do velho São Pedro.
(BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas – Livro vira-vira 1. Rio de
Janeiro: Edições BestBolso, 2011, p. 411. Adaptado.)