A mídia realmente tem o poder
de manipular as pessoas?
À primeira vista, a resposta para a pergunta que intitula
este artigo parece simples e óbvia: sim, a mídia é um poderoso instrumento de manipulação. A ideia de que o frágil cidadão comum é onipotente frente aos gigantescos e poderosos conglomerados da comunicação é bastante atrativa intelectualmente. Influentes nomes, como Adorno e Horkheimer,
os primeiros pensadores a realizar análises mais sistemáticas sobre o tema, concluíram que os meios de comunicação
em larga escala moldavam e direcionavam as opiniões de
seus receptores. Segundo eles, o rádio torna todos os ouvintes iguais ao sujeitá-los, autoritariamente, aos idênticos programas das várias estações. No livro Televisão e Consciência
de Classe, Sarah Chucid da Viá afirma que o vídeo apresenta
um conjunto de imagens trabalhadas, cuja apreensão é momentânea, de forma a persuadir rápida e transitoriamente o
grande público. Por sua vez, o psicólogo social Gustav Le Bon
considerava que, nas massas, o indivíduo deixava de ser ele
próprio para ser um autômato sem vontade e os juízos aceitos
pelas multidões seriam sempre impostos e nunca discutidos.
Assim, fomentou-se a concepção de que a mídia seria capaz
de manipular incondicionalmente uma audiência submissa,
passiva e acrítica.
Todavia, como bons cidadãos céticos, devemos duvidar
(ou ao menos manter certa ressalva) de preposições imediatistas e aparentemente fáceis. As relações entre mídia e público
são demasiadamente complexas, vão muito além de uma simples análise behaviorista de estímulo/resposta. As mensagens
transmitidas pelos grandes veículos de comunicação não são
recebidas automaticamente e da mesma maneira por todos os
indivíduos. Na maioria das vezes, o discurso midiático perde
seu significado original na controversa relação emissor/receptor.
Cada indivíduo está envolto em uma “bolha ideológica”, apanágio de seu próprio processo de individuação, que condiciona
sua maneira de interpretar e agir sobre o mundo. Todos nós, ao
entrarmos em contato com o mundo exterior, construímos representações sobre a realidade. Cada um de nós forma juízos
de valor a respeito dos vários âmbitos do real, seus personagens, acontecimentos e fenômenos e, consequentemente, acreditamos que esses juízos correspondem à “verdade”. [...]
Não obstante, a mídia é apenas um, entre vários quadros
ou grupos de referência, aos quais um indivíduo recorre como
argumento para formular suas opiniões. Nesse sentido, competem com os veículos de comunicação como quadros ou grupos
de referência fatores subjetivos/psicológicos (história familiar,
trajetória pessoal, predisposição intelectual), o contexto social
(renda, sexo, idade, grau de instrução, etnia, religião) e o ambiente informacional (associação comunitária, trabalho, igreja).
“Os vários tipos de receptor situam-se numa complexa rede
de referências em que a comunicação interpessoal e a midiática se completam e modificam”, afirmou a cientista social
Alessandra Aldé em seu livro: “A construção da política: democracia, cidadania e meios de comunicação de massa”. Evidentemente, o peso de cada quadro de referência tende a variar de
acordo com a realidade individual. [...]
Recorrendo ao pensamento de Saussure, é importante
ressaltar que o cidadão comum não tem o domínio completo
da estrutura linguística. Até um analfabeto funcional não representa um alvo completamente vulnerável à persuasão midiática, pois suas próprias dificuldades interpretativas o impedem de replicar fielmente qualquer tipo de discurso ideológico que seja oriundo dos meios de comunicação em larga
escala. Como bem asseverou Muniz Sodré, a mídia não manipula, mas sugere determinadas pautas e, em última instância,
cabe aos seus receptores aceitarem ou não. Os grandes veículos de comunicação podem até ter expectativas manipuladoras ou idealizar um modelo de público, mas a recepção de
um enunciado sempre vai ser individualizada e recriada pelo
sujeito.
(Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/
imprensa-em-questao/a-midia-realmente-tem-o-poder-de-manipular-
as-pessoas/. Francisco Fernandes Ladeira. Em: 14/04/2015. Edição 846.
Adaptado.)