A geladeira e o livro
Fazia dois dias que minha geladeira havia entrado em pane. Não deixou de resfriar, mas as luzes do painel piscavam o dia
inteiro, como se fosse uma bomba a ponto de explodir, e o alarme disparava de tempo em tempo, mesmo a porta estando bem
fechada. Sou otimista, achei que tudo se resolveria num passe de mágica, mas o coelho não saiu da cartola e acabei tendo que
chamar um técnico, que agendou a visita para a manhã seguinte, às 9h30m. Quando eram 9h25m, as luzes do painel, antes
esquizofrênicas, apagaram. O alarme já não disparava desde a noite anterior. Eu não queria mágica?
A primeira coisa que disse ao técnico: “Acredite, há dois dias que esta geladeira está tendo chilique, só parou quando o
senhor começou a subir pelo elevador”. Ele me deu um olhar compreensivo, fez um check up no aparelho e descobriu um
pequeno defeito. Alívio. Morri em R$ 300, mas a geladeira ganhou uma sobrevida. E minha neura também.
Ninguém gosta de passar por exagerado. Ao sairmos do cinema, somos capazes de listar um sem-número de elogios ao
filme que assistimos, mas basta alguém se empolgar com a nossa descrição e resolver assisti-lo por nossa causa que a
responsabilidade começa a pesar: “Olha, eu gostei, mas talvez não seja seu tipo de história. Vá sem expectativas. É meio longo.
Tem uma partezinha devagar, mas, sei lá, acho que vale a pena”.
Um amigo me recomendou um livro sensacional. Segundo ele, a melhor coisa que leu no último ano. Bom, então quero ler
também. No dia seguinte, ele largou o livro na portaria do meu prédio, e quando liguei para agradecer, ouvi: “Talvez tu não goste
tanto assim. Comprei pra ti uma edição diferente da minha, o tradutor não sei se é tão bom. Tu não é obrigada a gostar, tá?”.
Os episódios da geladeira e do livro, cada um a seu modo, demonstram o quanto ficamos inseguros ao virarmos referência.
No caso da geladeira, a única prova que eu tinha de que ela estava amarelando eram as luzes piscantes. Quando elas pararam
de piscar, passou a valer apenas a minha palavra. Que solidão.
Quando meu amigo incentivou a leitura do livro, estava expondo sua erudição, já que o autor era um filósofo. Mas no
momento em que demonstrei interesse em ler também, ele passou a duvidar do próprio entusiasmo. E se o livro não fosse tão
bom no meu parecer? De repente, não era mais o livro que estaria em julgamento, e sim ele. Solidão, também.
Outra: uma amiga resolveu ir a Machu Picchu depois que comentei coisas incríveis sobre a viagem que fiz para lá
recentemente. Ai, ai, ai. E se ela passar mal com a altitude? E se achar a comida muito apimentada? E se voltar pensando que
me empolgo por qualquer ruína de cartão postal? Já era: terá perdido a chance de ir para outro lugar mais encantador a seus
olhos. Por que fui emprestar os meus?
No fim das contas, tudo o que queremos é ser amados. Por aqueles a quem recomendamos um livro, por quem resolveu
viajar incentivado por nós, e, sim, pelo técnico que confirmou que nossa geladeira estava mesmo estragada, contra qualquer
evidência. Falando na geladeira, passa bem. As luzes nunca mais piscaram, nem o alarme disparou. A não ser o meu: “Não se
leve tão a sério, não se leve tão a sério, não se leve tão a sério”.
(Martha Madeiros. Revista O Globo. Em: 2012.)