Estilos da vida
Você se lembra daqueles personagens de quadrinhos que são impiedosamente seguidos por uma nuvem preta, que é uma
espécie de guarda-chuva ao contrário? Eles não têm para onde fugir: deslocam-se, mas a chuva os persegue, mesmo debaixo
do teto de sua casa.
Claro, no outro extremo do leque há pessoas que são seguidas por um sol esplendoroso, mesmo quando estão no escuro
ou no meio de um desastre que deveria empalidecer a luz do dia (se ela tivesse vergonha na cara).
Em suma, cada um de nós parece estar sempre numa condição meteorológica que lhe é própria e não depende nem da
estação nem dos acontecimentos do momento.
Talvez sejamos um pouco mais livres para escolher o estilo da vida que levaremos, seja qual for nosso pano de fundo.
Geralmente, por estilo de vida, entende-se um modelo que a gente imita para construir uma identidade e propô-la aos
olhos dos outros. Mas o estilo da vida, que é o que me interessa hoje, é outra coisa: é a forma literária na qual cada um narra
sua própria vida, para si mesmo e para os outros. Um exemplo.
Acabo de ler (e continuarei relendo por um bom tempo) “The Book of Dreams” (O Livro dos Sonhos), de Federico Fellini
(ed. Rizzoli). São mais de 400 páginas, em grande formato, que reproduzem fotograficamente os cadernos nos quais o diretor
italiano registrou seus sonhos, em palavras e desenhos.
Vários amigos que me viram ler o livro me perguntaram se, então, os sonhos de Fellini serviam de material para seus
filmes. A questão não cabe. O que o livro revela é que, para Fellini, o sonho era, por assim dizer, o gênero literário no qual ele
vivia (e, portanto, contava) sua vida – nos cadernos da mesa de cabeceira, nos filmes e no dia a dia.
Cuidado. Fellini não especulava nem um pouco sobre, sei lá, a “precariedade” de nossa percepção, que pode confundir
sonho com realidade. Ele nunca se perguntava se o que estava vivendo era sonho ou realidade, porque, para ele, o sonho era,
propriamente, o estilo da realidade.
Esse estilo era o que fazia com que seu olhar estivesse constantemente maravilhado ou atônito: graças a esse estilo, ele
atravessava (e contava) a vida como “um mistério entre mistérios” (palavras dele).
Pois bem, nós todos adotamos ou inventamos um estilo singular para a história de nossa vida – é o estilo graças ao qual
nossa vida se transforma numa história.
Cada um escolhe, provavelmente, o estilo narrativo que torna sua vida mais digna de ser vivida (e contada). Há estilos
meditativos, investigativos, introspectivos, paranoicos ou, como no caso de Fellini, oníricos e mágicos.
Quanto a mim, o estilo narrativo da minha vida é, sem dúvida, a aventura. Não só pelos livros que me seduziram na infância
(“Coração das Trevas”, de Conrad, seria o primeiro da lista). Mas porque a narrativa aventurosa sempre foi o que fez que minha
vida valesse a pena, ou seja, não fosse chata, mesmo quando tinha toda razão para ser.
Quando meu filho, aos quatro ou cinco anos, parecia se entediar, eu sempre recorria a um truque, que ele reconhecia
como truque, mas que funcionava. Eu me calava e me imobilizava de repente, como se estivesse ouvindo um barulho suspeito
e inquietante; logo eu sussurrava: “Atenção! Os piratas!”.
Nem ele nem eu acreditávamos na chegada dos piratas, mas ambos achávamos que a vida merecia um pouco de suspense.
(CALLIGARIS, Contardo. Folha de S. Paulo. Em: abril de 2001. Adaptado.)