Um cartão de Paris
Passei o dia trabalhando; li longamente um livro, tomando notas; revi horas e horas as provas de um livro de poesias de
um amigo. Quando me ergui e fui à varanda olhar o mar, o farol já estava pulsando na escuridão com suas luzes brancas e
vermelhas, um ou outro barco de pescador que passava era apenas um arfar surdo de motor e uma ou duas indecisas luzinhas.
Os pássaros já se tinham ido; de manhã eu vira rolas se amando sobre o telhado e andorinhas no ar, eram pequenas e escuras
e pareciam muito inquietas; também apareceram os sanhaços, há tanto tempo sumidos. Agora todos se tinham ido, e eu me
sentia fatigado e náufrago nesse começo de noite. Onde dormem os urubus? – indagava, inquieto, Jayme Ovalle, e depois
explicava a Vinicius de Moraes por que os açougues, à noite, ficam de luzes acesas: “A carne é vaidosa”.
Quando eu era criança não conseguia separar o Céu da religião do céu da minha terra mesmo, aquele que pairava sobre
os morros e o rio. Por isso sempre imaginei o Céu cheio de passarinhos, todos os passarinhos vindos comer nas nossas palmas.
Quantas saíras! Tucanos, araras lindas, papagaios peripatéticos contando histórias, a capengar de um lado para outro, como
velhos marujos do ar – e chusmas de coleirinhos do brejo! Pavões!
Agora não tenho mais céu nenhum, nem com pássaros nem com anjos; e o meu céu de praia está escuro, com as estrelas
brilhando fracas no ar enevoado. Mas como é fácil de alegrar meu coração! Recebo um cartão de Paris, não é de amante nem
namorada, é apenas uma recente amiga; mas como foi gentil em se lembrar de mim, em me mandar seu abraço, e como está
linda na fotografia! Essa delicadeza gratuita me faz bem. Ganhei meu dia, ganhei minha noite, já não me sinto mais sozinho na
varanda triste.
Se a velhice tem alguma coisa abençoada é permitir essas amizades realmente isentas de malícia. Sentimento tranquilo,
sem ciúme. Mas ainda assim com uma delicadeza toda especial, com um sabor lírico muito leve. Esse cartão de Paris me fez
bem, um grande bem.
(BRAGA, Rubem, Um cartão de Paris. Seleção e organização de Domício Proença Filho, Record, 1997, pp. 108-110. Publicada, anteriormente, n' O
Estado de S. Paulo, de 09/1990. Disponível em: https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/. Acesso em: 12/06/2024.)