Alterar estruturas da língua pode alterar as relações sociais?
Conjunto de falantes é o árbitro das mudanças linguísticas.
É sempre interessante observar como a língua se comporta diante das tensões que nela se refletem. De uns tempos para
cá, muita gente passou a ser corrigida em público nas transmissões ao vivo na internet por uma audiência empenhada em
rastrear as marcas de racismo, machismo, homofobia e demais preconceitos que estariam inscritos na língua. Não foram poucos
os que passaram a monitorar não apenas a fala alheia como ____ própria, ciosos de que mudar as palavras é uma forma de
mudar o mundo. Talvez seja, talvez não seja. O tempo dirá.
Personagens de novela, que geralmente aparecem na trama fazendo merchandising de produtos, passaram a vender
também as lições civilizatórias da cultura “woke”. “Nuvens negras” que anunciavam mau tempo foram substituídas por “nuvens
cinza” e muitos outros exemplos foram incorporados aos scripts. Ao mesmo tempo, a ministra Anielle Franco ressaltou que
termos como “caixa-preta” e “buraco negro”, que pareciam insuspeitos, também tinham uma carga de preconceito racial.
O verbo “denegrir”, mesmo sendo usado desde o latim no sentido de manchar a reputação, foi um dos principais alvos das
cartilhas de letramento racial que apareceram na internet, associado ____ cor de pele de pessoas, sempre com a advertência
de que era muito importante mudar os hábitos linguísticos. A motivação é das melhores; só não sabemos ainda se isso vai
contribuir, de fato, para o fim do racismo e dos demais preconceitos.
Dia desses, ouvi uma pessoa ser corrigida em uma live ao usar a expressão “mãe solteira”, que deveria ser substituída por
“mãe solo”. A explicação era que “mãe solteira” é uma expressão preconceituosa porque o estado civil não tem nada a ver com
a maternidade. Perfeito. Nesse caso, talvez o ideal fosse a supressão do adjetivo: já que não se diz “mãe casada” ou “mãe
viúva”, por que dizer “mãe solteira”? Bastaria dizer “mãe”.
Outro caso interessante é o da expressão “pessoa com deficiência”, que viria substituir “deficiente”, pois nenhum ser
humano deveria ser definido pela sua deficiência – o uso da palavra “pessoa” teria uma função importante na conscientização
de que eventuais deficiências não impedem alguém de ter uma vida normal. De fato, mas o que se vê hoje é que a expressão
foi reduzida ____ uma sigla (PcD) e lida “pê-cê-dê”. É provável que essa simplificação tenha ocorrido em razão do princípio da
economia, muito importante na comunicação.
____ algum tempo, tribunais eleitorais vinham usando com insistência a construção “eleitores e eleitoras” e também
“pessoa eleitora”. Parece que as coisas andaram mudando. Em trabalhos acadêmicos, sobretudo na área de humanidades,
passou a ser “obrigatório” o uso da linguagem dita “inclusiva”, de modo que, onde se lia “os historiadores”, se passou a ler “os
historiadores e as historiadoras” – e assim por diante, sempre com as duas palavras, no masculino e no feminino. No meio
acadêmico, o uso se tornou comum.
Uma coisa, porém, temos de reconhecer. Essa prática, além de tornar o texto enfadonho, é totalmente desnecessária. O
motivo é muito simples: a forma “historiadores”, no masculino, generaliza as pessoas que exercem essa atividade. É a condição
de “historiador” que interessa quando usamos o termo de modo geral (por exemplo, “os historiadores do século passado”),
não a identidade do ser humano. O termo feminino existe para as situações em que tratamos de uma ou mais mulheres em
particular (“uma historiadora do período”). Isso vale para qualquer termo que indique a função, a condição, a profissão etc.,
mas não vale, por óbvio, para homens e mulheres. Ninguém nunca disse os “homens aqui presentes” com o intuito de englobar
“homens e mulheres”, certo?
O problema é que não está a nosso alcance fazer uma mudança desse teor, de caráter estrutural. A língua é uma construção
coletiva autogerida. É a coletividade representada pelos falantes que determina o que muda e o que não muda, o que tem
cabimento e o que não tem. É fácil perceber isso no caso dos neologismos, que, quando úteis ou funcionais, passam a integrar
a língua, mesmo que alguns os rejeitem por apego ___ tradição ou por outro motivo.
O pronome “todos”, por exemplo, é um pronome indefinido que indica totalidade inclusiva (todas as pessoas). É uma das palavras mais inclusivas da língua (ao lado de “tudo”), mas a cartilha da inclusão recomenda cumprimentar a “todos e todas”, reduzindo
o alcance de “todos”, que ficaria restrito ao gênero masculino. Pode-se dizer que essa fórmula de saudação foi bem-aceita e acabou
virando regra de etiqueta em alguns lugares. Cumprimenta-se a “todos e todas” e, depois, está-se livre para continuar falando de
forma econômica.
O tempo dirá se a sociedade mudou no rastro das palavras ou se o movimento é exatamente o inverso. Aguardemos.
(NICOLETI, Thaís. Alterar estruturas da língua pode alterar as relações sociais? Jornal Folha de S. Paulo, 2024. Adaptado.)