Leia o texto abaixo e responda a questão:
A dor do mundo
Por muito tempo achei – escrevi e disse – que os
males humanos foram sempre mais ou menos, e que a
loucura toda já contamina o nosso café da manhã pelo
universo cibernético. As aflições, as malandragens, as
corrupções, os assassinatos absurdos, os piores aleijões
morais, tudo é meu, seu, nosso pão de cada dia. Mas, de
tempos para cá, comecei a achar que era lirismo
sentimental meu. Estamos bem piores, sim. Por sermos
mais estressados, por termos valores fracos, tortos ou
nenhum, porque estamos incrivelmente fúteis e nos
deixamos atingir por qualquer maluquice, porque até
nossos ídolos são os mais transtornados, complicados.
Nossos desejos não têm limite, nossos sonhos, por outro
lado, andam ralinhos. Temos manias de gourmet, mas não
podemos comer. Vivemos mais tempo, mas não sabemos
o que fazer com ele. Podemos ter mais saúde, mas nos
intoxicamos com excesso de remédios. Drogas habituais
não bastam, então usamos substâncias e doses
cavalares.
A sexualização infantil é um fato e começa em
casa com mães amalucadas e programas de televisão
pornográficos a qualquer hora do dia. O endeusamento da
juventude a enfraquece, os adolescentes lidam sozinhos
com a explosão de seus hormônios e a permissividade
geral que anula limites e desorienta. A pressão social e até
a insistência de governantes nos impõem o deus
consumo, que nos deixa contentes até as primeiras,
segundas, definitivas dívidas baterem à porta: a gente
abre, e está atolado até o pescoço.
Uma cantora pop, que me desinteressava pela
aparência e por algumas músicas, morre, mata-se, por uso
desmedido de drogas (álcool sendo uma delas) aos 27
anos. Logo se exibe (quase com orgulho, ou isso já é
maldade minha?) uma lista de brilhantes artistas mortos
na mesma idade pela mesma razão. Nas homenagens
que lhe fizeram, de repente escuto canções lindas, com
uma voz extraordinária: mais triste ainda, pensar que esse
talento se perdeu. Um louco assassino prepara e executa
calmamente a chacina de dezenas de crianças e
adolescentes num acampamento em ilha paradisíaca das
terras nórdicas, onde o índice de desenvolvimento
humano é o maior do planeta, e quase não existe a
violência, que por estas bandas nos aterroriza. Explode
edifícios, depois vai até a ilha, mata todo mundo, confessa
à polícia que fez coisas atrozes, mas que “era necessário”,
e que não aceitará a culpa.
Viramos assassinos ao volante, de preferência
bêbados. Nossos edifícios precisam ter portarias treinadas
como segurança, nossas casas, mil artifícios contra
invasores, andamos na rua feito coelhos assustados. Não
há lugar nas prisões, então se solta a bandidagem, as
penas são cada vez mais branda ou não há pena alguma.
Pena temos nós, pena por nós, pela tão espalhada dor do
mundo. Sempre falando em trilhões, brigando por
quatrilhões, diante da imagem das crianças morrendo de
fome na Etiópia, na Somália e em outros países, tão
fracas que não têm mais força para engolir o mingau que
alguma alma compadecida lhes alcança: a mãe observa
apática as moscas que pousam no rostinho sofrido. Estou
me repetindo, eu sei, talvez assim alivie um pouco a angústia da também repetida indagação: que sociedade
estamos nos tornando?
Eu, recolhida na ponta inferior deste país, sou
parte dela e da loucura toda: porque tenho alguma voz,
escrevo e falo, sem ilusão de que adiantará alguma coisa.
Talvez, como na vida das pessoas, esta seja apenas uma
fase ruim da humanidade, que conserva fulgores de
solidariedade e beleza. Onde não a matamos, a natureza
nos fornece material de otimismo: uma folha de outono
avermelhada que a chuva grudou na vidraça, a voz das
crianças que estão chegando, uma música que merece o
termo “sublime”, gente honrada e produtiva, ou que cuida
dos outros. Ainda dá para viver neste planeta. Ainda dá
para ter esperança de que, de alguma forma, algum dia, a
gente comece a se curar enquanto sociedade, e a miséria
concreta não mate mais ninguém, enquanto líderes
mundiais brigam por abstratos quatrilhões.
Crônica da escritora Luft Lya, publicada na Revista VEJA, de 03 de
agosto de 2011.