RITALINA, UMA PERIGOSA "FACILIDADE" PARA OS PAIS
por Ingrid Matuoka
A busca por soluções fáceis, o diagnóstico equivocado e a
incompreensão dos pais acerca da agitação natural das
crianças elevaram o Brasil ao posto de segundo maior
consumidor de Ritalina do mundo, perdendo apenas para os
Estados Unidos.
O dado, do Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários de
Medicamentos, é alarmante. Ritalina é o nome comercial do
metilfenidato, medicação que promete tratar o Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade, ou TDAH, e os principais
consumidores da droga tarja preta são crianças e
adolescentes.
Segundo a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária),
de 8% a 12% das crianças no mundo foram diagnosticadas
com TDAH, e a suspeita dos pais de que os filhos tenham o
transtorno é o principal motivo que os leva aos médicos. Em
2010 foram vendidas 2,1 milhões de caixas de metilfenidato.
Em 2013, foram 2,6 milhões.
Para conversar sobre o uso indiscriminado de Ritalina e
suas consequências, CartaCapital entrevistou Wagner
Ranña, médico psiquiatra com experiência em saúde mental
da infância e docente do Sedes Sapietiae, um instituto
dedicado à saúde mental, à educação e à filosofia.
CARTACAPITAL: O Brasil é o segundo maior consumidor de
Ritalina do mundo. A que se deve isso?
WAGNER RANÑA: No Brasil, a rede voltada para assistência
aos problemas de saúde mental da criança e do adolescente
é muito precária - o que não é privilégio do Brasil, este
problema afeta quase todos os países. As crianças com
dificuldades de comportamento, agitadas e irrequietas são
vistas como doentes pelos profissionais da psiquiatria
biológica e da neurociência, e então eles receitam remédios.
Como consequência, temos um número elevadíssimo de
crianças recebendo medicação, mas sem se discutir se ela é
mesmo necessária ou se é a melhor forma de cuidado.
Na visão do nosso grupo de trabalho no Sedes Sapientiae,
que tem um histórico no cuidado com a saúde mental da
criança, é preciso tentar entender o sofrimento psíquico e os
problemas de comportamento. E não ver isso de pronto
como um problema, porque a maioria são só crianças
agitadas. E, no mundo da rapidez, ironicamente, elas são colocadas como doentes. Estamos desperdiçando jovens
que poderiam ser sujeitos muito ágeis, como atletas e
músicos.
CC: Há efeitos colaterais no uso do remédio?
WR: Além de causar dependência, a Ritalina provoca muitos
outros efeitos colaterais: as crianças emagrecem, têm
insônia, podem ter dor de cabeça e enurese [incontinência
urinária]. E, apesar de sua fama, não tenho uma experiência
de eficácia da droga, mesmo em casos em que ela deveria
ser usada. Percebo que o trabalho de terapia, de orientação
e cuidado real com a criança dá muito mais resultado.
Começamos a passar para a criança a cultura de que um
comprimido resolve tudo na vida, de que não existe mais
solução pelo pensamento, pela conversa, pelo afeto e pela
compreensão. O mundo todo é agitado, as pessoas são
desatenciosas umas com as outras, e as crianças é que
acabam tachadas de hiperativas.
Outra coisa, as crianças falam assim para mim: “eu sou um
TDAH” ou “eu sou o da Ritalina”. Elas se colocam nesse
lugar de alguém doente, com um déficit. A vida deles vira
isso.
Tratar com drogas as crianças agitadas ou com dificuldade
de aprendizagem é deixar de questionar o método de ensino,
o consenso da escola, e a subjetividade da criança diante do
aprendizado. É uma atitude muito imediatista.
CC: E quais são as alternativas ao tratamento com a droga?
WR: Tenho visto muitas crianças que, por trás da agitação,
estão submetidas a uma violência, um abuso, ou a uma
situação psicopedagógica não adequada. Colocar tudo como
sendo um problema do cérebro da criança é muito antiético,
é não levar em conta sofrimentos e as necessidades que ela
está expressando.
Por exemplo, outro dia atendi uma menina que a mãe dizia
ser hiperativa e precisava de Ritalina. Em cinco minutos de
conversa descobri que ela tinha vivido uma situação em que
o pai tentou matar a mãe. Essa criança estava angustiada,
não era hiperatividade.
É claro que cada caso é um caso, há crianças realmente
hiperativas e que precisam de um cuidado. Ainda assim
existem muitas medicadas de maneira incorreta. E estamos
vivendo uma epidemia de transtornos, ou supostos
transtornos. Então além dessa medicalização excessiva, há
uma falta de projetos terapêuticos para o sofrimento
psíquico na infância, que é grande. Isso facilita a
medicalização da infância, pois sem equipes treinadas é
mais fácil só dar o remédio.
CC: Há quem exagere ou finja sintomas para conseguir a
receita?
WR: Sou totalmente contrário o uso de questionários com
pontos para o diagnóstico de sofrimento psíquicos [como
fazem muitos psiquiatras]. Isso não é ver a criança
eticamente. E os adolescentes podem fingir mesmo, porque
querem tomar Ritalina para ter um bom desempenho na
prova, ter mais energia para estudar.
A Ritalina é uma anfetamina associada a drogas com ação
na atividade cerebral. A cocaína e as anfetaminas são
consumidas por atletas que querem mais rapidez, pelos
executivos que querem ficar acordados para trabalhar mais,
pelos motoristas que querem fazer uma viagem e não
dormir. É um verdadeiro doping.
In: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ritalina-uma-perigosa-facilidade-para-pais-8006.html