TRIUNFO NO ALÉM
Ruy Castro
RIO DE JANEIRO - Um intelectual carioca,
morto há mais de dois anos, andou se
manifestando com alguma frequência em seu
antigo endereço. Não ria. Suspirava, mudava coisas
de lugar, fazia barulho com papéis – sempre
invisível, claro. O relato, apavorado, é dos porteiros
e operários que foram chamados a retirar seu
material, fazer obras e cuidar da faxina do
apartamento. Um deles passou a trabalhar com um
terço no pescoço. Outros fugiram e não voltaram.
Há pouco, quando se anunciou que o
apartamento seria alugado, surgiu um problema na
caixa-d'água, que ninguém solucionava. Quando
finalmente o resolveram, as luzes do hall do andar
deram para piscar, como que em código. Mas não
ficou ninguém para decifrá-lo.
A história não é de hoje. Começou pouco
depois que dissemos adeus a nosso amigo e nos
perguntamos como o mundo se viraria sem ele.
Pelo visto, ele nunca esteve muito longe.
Acompanho o caso desde o início, mas só a
pouco me ocorreu uma explicação. Nosso amigo,
um homem lógico, descrente de qualquer
possibilidade de vida no Além, pode ter caído das
nuvens (literalmente) ao descobrir que, sabe-se lá
como, conservara certa consciência depois de
morto. Ou seja, a morte não era o fim. Seu
desapontamento ao constatar que levara a vida
equivocado a esse respeito (e quem o conheceu
sabe que ele nunca se equivocava) pode ter
provocado os suspiros.
De repente, convenceu-se de que, ao
contrário, foi a força dos seus poderes mentais que
o fez vencer a morte. Mais uma vez, a última palavra
era a dele. Ficou eufórico, daí o enguiço na caixa-d'água e o pisca-pisca das lâmpadas -é ele testando
os seus poderes, enquanto não descobre uma
maneira mais cerebral de se comunicar. Vamos
esperar. O casalzinho que alugou o apartamento
sem saber de nada é quem em breve nos dirá.
In: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2015/10/1692520-triunfo-no-alem.shtml