Texto para a questão
O GRANDE ENCONTRO DOS DESAPARECIDOS
(Crônica de Moacyr Scliar)
“Sem destino: 102,2 mil desapareceram em 6 meses.”
Folha de São Paulo, caderno C - Cotidiano, 10 jul. 1999
Uma vez ao ano os desaparecidos se reúnem. Sempre em
data diferente e em local diferente: às margens de um
grande rio, no meio da floresta, no alto de uma montanha.
Ninguém falta. Por certos mecanismos de comunicação,
do qual só os desaparecidos têm conhecimento, a notícia
chega a todos e a cada um deles.
No dia aprazado lá estão. Usam máscaras, naturalmente.
Alguns – precaução adicional – colocam vendas sobre os
olhos: não querem ver os rostos, mesmos disfarçados,
dos outros desaparecidos.
O encontro é, sobretudo, de trabalho. Para isso, os
desaparecidos são divididos em comissões temáticas,
que têm como objetivo responder a perguntas cruciais: é
lícito desaparecer quando há uma crise na família? O
desemprego é uma boa razão para o desaparecimento?
Deve uma possível reaparição ser precedida de
exigências ao grupo, à comunidade, ao país?
As discussões são intensas e acaloradas. Mas há
também tempo para amenidades, para amável convívio,
em que os desaparecidos intercambiam experiências e
relatam episódios diversos, pitorescos ou não. Entre as
figuras mais interessantes está a de um ancião com
cerca de 90 anos, desaparecido quando bebê. Criado por
feras do mato, ele preferiu, no entanto, desaparecer na
civilização e assim percorreu o Brasil de sul a norte e de
leste a oeste, desaparecendo em cidades, em fazendas,
em feiras livres e até numa grande convenção do
comércio lojista. Suas histórias, engraçadas ou trágicas,
são muito apreciadas.
À medida que se aproxima o final do encontro, os
desaparecidos vão ficando cada vez mais inquietos;
consultam o relógio ou miram o crepúsculo. Em breve
terão de desaparecer, e isso será um choque. Sentir-seão melhor depois que sumirem, depois que se
dissolverem no anonimato. Mas a ânsia os acompanhará
para sempre, mesmo nos momentos de maior liberdade.
Dentro de cada desaparecido há um ser incógnito que faz
força para aparecer. E que, em algum momento, o
conseguirá.
FONTE: https://contobrasileiro.com.br/o-grande-encontro-dos-desaparecidos-cronicade-moacyr-scliar/