A QUESTÃO SE REFERE AO
TEXTO A SEGUIR.
Sobre pizzas e vacas
Comer é uma atividade social que vai muito
além de saciar o apetite e tem provocado
observações nem sempre sólidas sobre o
caráter dos povos
Jaime Pinsky — Historiador e escritor,
professor titular aposentado da Unicamp |
05/01/2025
Fim de ano é aquele período em que a roupa
começa a encolher, dizia minha mãe, rindo de
suas amigas ao ouvi-las reclamar que não era
justo existir um mês em que se come muito
(dezembro), seguido de outro (janeiro, férias
escolares) em que se coloca roupa de banho e
os quilos adquiridos se revelam de modo
inequívoco. Comer é uma atividade social que
vai muito além de saciar o apetite e tem
provocado observações nem sempre sólidas
sobre o caráter dos povos. A cultura da pizza,
comida encarregada de resolver o problema de
grande parte dos habitantes deste planeta, é
um exemplo de como uma generalização
superficial pode estar equivocada. Claro, pois a
pizza, ao que tudo indica, não é a melhor
representação gastronômica da Itália, mesmo
porque sua origem está na Índia ou no Oriente
Médio, já que é nessas regiões do planeta em
que o pão tem esse formato, redondo e chato,
provável inspiração dos inventores da pizza.
O mais fascinante, contudo, é a hipótese de
um sociólogo brasileiro, já falecido, Gabriel
Bolaffi, para o qual a pizza era um produto
consumido apenas no sul da península, e sua
expansão pela Itália toda teve a ver com a
invasão dos americanos durante a Segunda
Guerra Mundial. Os soldados ianques, à
medida que avançavam para o norte,
solicitavam aqueles discos práticos e
saborosos, mas que não eram produzidos em outras regiões. Como os soldados tinham
apetite, dólares e armas, donos de bares e
pequenos restaurantes trataram de preparar as
próprias pizzas, para alegria dos americanos.
Assim, graças aos soldados estrangeiros, a
pizza deixou de ser uma comida regional e
tornou-se um verdadeiro símbolo nacional. Com
a volta dos exércitos vencedores ao continente
americano, a pizza tornou-se uma necessidade
gastronômica também nos Estados Unidos,
devidamente adaptada ao duvidoso gosto dos
"gringos", que a devoram em pé, na rua, sem o
uso de talheres, acompanhada de refrigerante
em vez de vinho e preparada com queijo com
sabor de plástico... Mas, de qualquer forma,
baseada naquela encontrada pelos soldados
em solo italiano.
O fato é que "comidas típicas" não são tão
típicas assim, mas, por se apresentarem como
tal, representam com dignidade, maior ou
menor, seus supostos criadores. As famosas
alheiras portuguesas, por exemplo, foram
criadas por necessidade, não por prazer,
alegria ou fome. Conta-se que o governo
português, aliado da Igreja, desconfiava das
pessoas que não comiam linguiça — provável
indício de que mantinham clandestinamente
práticas judaicas ou muçulmanas. Portugal, é
importante ressaltar, estava preocupado em
fazer uma espécie de "limpeza religiosa",
acabando com resquícios não cristãos na sua
população (século 16). E o governo morria de
medo de avanços econômicos que pudessem
ameaçar a estrutura de poder arcaica existente.
Os judeus consumiam as alheiras e ostentavam
fileiras de carne de aves e legumes temperados
com alho para mostrar sua suposta adesão ao
cristianismo quando, na verdade, não
passavam de cristãos novos mal resolvidos,
que tinham nojo da carne de porco, mas
fingiam comê-la para não serem executados
nas fogueiras da Inquisição e do retrógrado
governo lusitano após terríveis torturas. Assim
teria surgido essa linguiça sem carne de
porco…
Vindo para o nosso continente, vale a pena
recordar a história que o jornalista Ariel
Palacios nos conta sobre a carne de vaca,
símbolo gastronômico dos nossos vizinhos, em seu delicioso livro “Os argentinos”. Para início
de conversa, Ariel nos lembra que a vaca não é
argentina, nem sequer americana, mas foi
trazida para a Argentina, via Brasil, várias
décadas após a chegada de Cabral. Durante
anos, os bovinos passearam sossegados entre
os Andes e o Atlântico, sem que suas virtudes
alimentícias fossem percebidas. Só então a
vaca se tornaria um verdadeiro símbolo
nacional. Segundo Palacios, os argentinos
estão dispostos até a discutir se Pelé foi melhor
do que Maradona, mas não admitem colocar
em questão a superioridade de suas vacas.
Para dizer a verdade, e que me perdoem os
ótimos criadores que temos no Brasil, muitos
brasileiros, como eu, concordam com eles.
PINSKY, Jaime. Sobre pizzas e vacas. Correio Braziliense, 05 de janeiro de 2025.
Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2025/01/7026305-sobrepizzas-e-vacas.html. Acesso em: 05 jan. 2025. Adaptado.