TEXTO: OUVIDO
Quando você cresce, você quer que não seja verdade. Perde a
intimidade com os brinquedos. Com os jogos favoritos. Perde a intimidade
até consigo mesmo. Um novo ser emerge. E surgem os modelos de
desenhos para se tornar alguém frente aos outros. O sorriso já não é o
mesmo, o olhar já não é o mesmo. E quando menos se espera já não é
possível conhecer-se... Já não há mais qualquer identidade. Apenas o
silêncio acompanha, e a raiva se estampa no semblante à guisa de arma.
Amarram-se correntes às exigências da vida. As pessoas já não se
reconhecem. E você, de repente, se instala num vazio pela angústia do grito
entalada na garganta. Deseja derrubar essa muralha que o separa de si
mesmo. "EU EXISTO!".
Um ouvido. Sim, esse é o degrau que você precisa transpor para
vencer a muralha. Não querer possuir, mas apenas pegar emprestado por
alguns instantes. Um ouvido que possa ouvir a própria cabeça, cheia de
medo e confusão. Quando olhar para o seu pai, verá que ele também estará
ocupado com os afazeres da própria vida. Na realidade, ele também se
ausenta no intuito de preencher o vazio que acredita alimentar a sua alma.
Sua mãe parece preocupada com os argumentos da novela. E você já é
crescido, dizem. Mas ninguém contou como começar essa nova etapa da
vida. Deseja apenas um ouvido. Engraçado, as pessoas têm duas orelhas,
empregadas gratuitamente, e não querem ou não sabem mais emprestar sua
escuta.
Apenas um ouvido. Esse é o grande tesouro que se almeja. Poderias
me emprestar o teu? Por isso continuo a gritar: "Eu EXISTO!!!".
MENDONÇA, Tulius - Livro Entreatos - p. 43.