O ator
O homem chega em casa, abre a porta e é
recebido pela mulher e os dois filhos,
alegremente. Distribui beijos entre todos,
pergunta o que há para jantar e dirige-se para o
seu quarto. Vai tomar um banho, trocar de
roupa e preparar-se para algumas horas de
sossego na frente da televisão antes de dormir.
Quando está abrindo a porta do seu quarto, ouve
uma voz que grita: - Corta! O homem olha em
volta, atônito. Descobre que sua casa não é uma
casa, é um cenário. Vem alguém e tira o jornal
e a pasta das suas mãos. Uma mulher vem ver
se a sua maquiagem está bem e põe um pouco
de pó no seu nariz. Aproxima-se um homem
com um script na mão dizendo que ele errou
uma das falas na hora de beijar as crianças.
- O que é isso? - pergunta o homem. - Quem são
vocês? O que estão fazendo dentro da minha
casa? Que luzes são essas?
- O que, enlouqueceu? - pergunta o diretor. -
Vamos ter que repetir a cena. Eu sei que você
está cansado, mas...
- Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu
banho e botar meu pijama. Saiam da minha
casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos!
Saiam!
O diretor fica parado de boca aberta. Toda a
equipe fica em silêncio, olhando para o ator.
Finalmente o diretor levanta a mão e diz:
- Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos
parar um pouquinho e...
- Estafa coisa nenhuma! Estou na minha casa,
com a minha... A minha família! O que vocês
fizeram com ela? Minha mulher! Os meus
filhos!
O homem sai correndo entre os fios e os
refletores, à procura da família. O diretor e um
assistente tentam segurá-lo. E então ouve-se
uma voz que grita: - Corta! Aproxima-se outro
homem com um script na mão. Descobre que o
cenário, na verdade, é um cenário. O homem
com um script na mão diz:
- Está bom, mas acho que você precisa ser mais
convincente.
- Que-quem é você?
- Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos
refazer esta cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega
em casa e descobre que sua casa não é uma casa,
é um cenário. Descobre que está no meio de um
filme. Não entende nada.
- Eu não entendo...
- Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu
ou não.
- Eu devo estar louco. Isto não pode estar
acontecendo. Onde está minha mulher? Os
meus filhos? A minha casa?
- Assim está melhor. Mas espere até
começarmos a rodar. Volte para a sua marca.
Atenção, luzes...
- Mas que marca? Eu não sou personagem
nenhum. Eu sou eu! Ninguém me dirige. Eu
estou na minha própria casa, dizendo as minhas
próprias falas...
- Boa, boa. Você está fugindo um pouco do
script, mas está bom.
- Que script? Não tem script nenhum. Eu digo
o que quiser. Isto não é um filme. E mais, se é
um filme, é uma porcaria de filme. Isto é
simbolismo, ultrapassado. Essa de que o mundo
é um palco, que tudo foi predeterminado, que
não somos mais do que atores... Porcaria!
- Boa, boa. Está convincente. Mas espere
começar a filmar. Atenção...
O homem agarra o diretor pela frente da camisa.
- Você não vai filmar nada! Está ouvindo?
Nada! Saia da minha casa.
O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo
chão. Nisto ouve-se uma voz que grita:
- Corta!
Luís Fernando Veríssimo