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O destino de ser mãe
A concepção e o valor da maternidade foram se transformando ao longo da história — e a ciência teve um papel fundamental
nessas construções. “Não dá para falar em termos lineares e, ao longo do tempo, vemos muitas facetas de maternidade”, pontua a
pesquisadora da UFPR [Marlene Tamanini]. Até a Idade Média, a maternidade era desvalorizada e as mulheres não tinham um papel
de destaque na criação dos filhos. Entre os motivos que contribuíam para essa visão estavam a ênfase no poder paterno, a
fragilidade física das crianças e a alta taxa de mortalidade infantil.
Durante o Renascimento (dos séculos 15 ao 17), a atenção materna às crianças começou a aparecer como valor essencial,
especialmente nas classes mais abastadas. A ampliação dessas responsabilidades levou a uma crescente valorização do ideal
mulher-mãe, ainda que isso não ultrapassasse o ambiente doméstico e não significasse a redução da autoridade paterna. No
Ocidente, a mulher passou a ser vista como “predestinada” a ter filhos, principalmente a partir do século 18. Segundo a filósofa
francesa Elisabeth Badinter, uma das mais importantes pesquisadoras da área, dois discursos diferentes confluíram para modificar
a atitude da mulher em relação aos filhos: um econômico, que se apoiava em estudos demográficos demonstrando a importância
do crescimento populacional para o país; e o liberalismo, que favorecia ideias de liberdade, igualdade e felicidade individual.
Para completar, um terceiro discurso, sustentado pelo desenvolvimento da biomedicina, reforçava a ideia de que era função
da mulher se ocupar dos filhos. “O útero como definidor exclusivo das mulheres vira quase um fetiche dos discursos médicos. Ela
passa a ser definida como um ser que se completa e se organiza no papel de mãe”, destaca Tamanini. “A maternidade entra como
a solução para a vida das mulheres. Quem faz esse discurso agora é o médico, e essa construção moderna passa a ser necessária
para organizar a ordem da sociedade.” [...]
Com o surgimento dos métodos contraceptivos e o avanço do movimento feminista nos anos 1960, a mulher contemporânea
pode escolher não ter filhos. Entretanto, a maternidade segue um marcador social relevante. “Parece ser uma escolha individual,
mas nem sempre é, porque existem muitas estruturas por trás dessa decisão. Existe uma cobrança, uma expectativa de que se não
formos mães, não seremos mulheres de verdade. Às vezes ela é tão forte que faz muitas mulheres serem mães sem nem saberem
por quê”, destaca a socióloga Thaís de Souza Lapa, professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e
coordenadora do laboratório de Sociologia do Trabalho na mesma universidade. Na avaliação dela, embora atualmente consigam
ocupar locais não permitidos no passado, como em cargos de chefia ou cursando ensino superior, muitas mulheres ainda são vistas
como “estrangeiras” nesses espaços — e a maternidade é um dos poucos lugares onde isso não acontece.
Revista Galileu, ed. 384, mar. 2024.