Texto I
Um alerta contemporâneo
O planeta nunca foi o mesmo. Ao longo do tempo, temos passado
ao largo dessa questão, como se ela não nos importasse para
entendermos melhor onde estamos. E o que enfrentamos, a cada
momento, para existir. Um simples dado ignorado sobre o planeta
pode nos revelar alguma coisa fundamental sobre nós mesmos.
Talvez esse simples dado, sobre a existência do que não
conhecemos, nos explique o que não conseguimos explicar até
agora.
O calor excessivo na Europa, as cheias no continente asiático, as
recentes chuvas de inverno durante o nosso verão devem ser
mais uma reação da natureza ao que temos feito de errado no
mundo. Cada fenômeno desses é um gesto de nossos parceiros
para nos chamar a atenção para o que deve estar errado. Ou,
então, uma simples declaração de guerra, sei lá de que tipo.
Quando nossos erros se concluem antes de um desastre final,
nossos parceiros deixam para lá, esperam que desvendemos o
fracasso de nossas más ideias. Outro dia, um daqueles príncipes
do Oriente Médio ofereceu ao Brasil fazer parte da Opep, a
organização dos países exportadores de petróleo. Deve ter feito o
convite porque quase ninguém mais quer saber da Opep, por
causa das novas fontes de energia. Ninguém está mais a fim de
gastar fortunas na exploração de petróleo, quando o mundo
desenvolve e já usa novas fontes limpas de energia, como a
eólica e a solar.
O novo coronavírus é um sinal desse confronto entre o que foi
vantagem no passado e hoje não é mais. É uma formação natural
de um mundo que ainda não conhecemos, equivalente ao que foi
a Gripe Espanhola, no final da Primeira Guerra Mundial. Um
alerta contemporâneo.
No dia 11 de novembro de 1918, era assinado o tratado de paz
que encerrava a Grande Guerra. Com mais de 16 milhões de
vítimas e histórias de arrepiar qualquer um de tanta violência e
crueldade, essa guerra seria responsável por um número de
mortes que acabou sendo pequeno perto de outra tragédia
simultânea: a chamada Gripe Espanhola, que muitos acreditam
ter interrompido de 30 a 50 milhões de vidas, em todos os
continentes. Curiosamente, como o coronavírus, a trágica
epidemia não era uma gripe, mas o resultado do surgimento e
multiplicação de um vírus até então desconhecido.
Segundo historiadores da época, apesar do nome da epidemia, o
vírus tinha sido trazido da costa leste americana para a Europa,
pelos combatentes dos Estados Unidos, que haviam entrado na
guerra em abril de 1918. Da Europa, os navios americanos e os
de seus aliados o levaram para o resto do mundo, chegando ao
Rio de Janeiro no mês de setembro daquele ano, num navio
britânico que deixou aqui a gripe que não era gripe espalhada
entre as meninas da Praça Mauá. E elas a transmitiram ao resto
da cidade, onde a epidemia atingiu 600 mil habitantes, mais da
metade da população. Como no caso do coronavírus, os que
praticavam viagens transcontinentais eram os responsáveis por
espalhar o vírus fatal pelo mundo afora.
O coronavírus, como a Gripe Espanhola, é uma espécie de
resistência da natureza às nossas barbaridades. Uma resistência
que ajudamos a se tornar de caráter global, graças ao progresso e
ao poder, como se fôssemos estimulados por forças que não
compreendemos, nem somos capazes de enfrentar. É claro que o coronavírus nos faz mal; por isso devemos combatê-lo. Mas,
sempre lembrando que ele vem de um mundo ao qual também
pertencemos e ao qual devemos atenção e respeito, até
conhecê-lo melhor.
Cacá Diegues. In: O Globo. 16/03/2020. [Adaptado]
(Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/um-alertacontemporaneo-24305182)