TEXTO I
A resistência (trecho)
Isto não é uma história. Isto é história.
Isto é história e, no entanto, quase tudo o que tenho ao
meu dispor é a memória, noções fugazes de dias tão remotos,
impressões anteriores à consciência e à linguagem, resquícios
indigentes que eu insisto em malversar em palavras. Não se
trata aqui de uma preocupação abstrata, embora de abstrações
eu tanto me valha: procurei meu irmão no pouco que escrevi
até o momento e não o encontrei em parte alguma. Alguma
ideia talvez lhe seja justa, alguma descrição porventura o
evoque, dissipei em parágrafos sinuosos uns poucos dados
ditos verídicos, mais nada. Não se depreenda desta observação
desnecessária, ao menos por enquanto, a minha ingenuidade:
sei bem que nenhum livro jamais poderá contemplar ser humano
nenhum, jamais constituirá em papel e tinta sua existência feita
de sangue e de carne. Mas o que digo aqui é algo mais grave,
não é um formalismo literário: falei do temor de perder meu irmão
e sinto que o perco a cada frase.
Por um instante me confundo, esqueço que também as
coisas precedem as palavras, que tratar de acessá-las implicará
sempre novas falácias, e, como antes pelo texto, parto por este
apartamento à procura de rastros do meu irmão, atrás de algo
que me restitua sua realidade. Não estou em sua casa, a casa
dos meus pais onde o imagino fechado no quarto, não posso
bater à sua porta. Milhares de quilômetros nos separam, um
país inteiro nos separa, mas tenho a meu favor o estranho
hábito de nossa mãe de ir deixando, pelas casas da família,
objetos que nos mantenham em contato. Neste apartamento
de Buenos Aires ninguém mora. Desde a morte dos meus avós
ele é só uma estância de passagem, encruzilhada de familiares
distantes, distraídos, apressados, esquecidos da existência dos
outros. Encontro um álbum de fotos cruzado na estante, largado
no ângulo exato que o faça casual. Tenho que virar algumas
páginas para que enfim me assalte o rosto do meu irmão, para
que enfim me surpreenda o que eu já esperava.
Julián Fuks
(Extraído de: A resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2015)