Leia o texto a seguir:
O inverno
Rubem Braga
Foi a mais estranha manhã que tenho visto no Rio, essa de
sexta-feira. Depois de uma noite de lua veio um vento que
amontoou nuvens baixas sobre a cidade e, de súbito, desfechou
uma chuva forte, com jeito de chuva de verão. Mas sem aquela
pressão e eletricidade desses temporais que se formam atrás
das montanhas de pedras, como bandidos que se juntam para
um assalto ― e de súbito rebentam sobre as casas, entre
relâmpagos e trovoadas.
O temporal matutino veio com um vento quase frio, e às onze
horas da manhã o ar estava escuro e ao mesmo tempo leve
como de madrugada. Na minha rua, com a tristeza das árvores
podadas, o asfalto molhado tinha um reflexo tão triste, uma luz
pálida de olhos de pessoa doente.
E aquela escuridão era como um dia de fim de outono na França,
esses dias em que a cidade grande assume um ar egoísta,
apressado, ao mesmo tempo brutal e cheio de tédio. O inverno!
Pode-se amá-lo nas montanhas cobertas de neve e de sol e
nas noites urbanas, quando as mulheres esplendem entre os
grandes casacos macios, no meio das luzes. Mas a rua diuturna
é triste e feroz quando a neve se transforma em lama e o vento
gelado esbofeteia o transeunte.
A tristeza pior, que mais de uma vez me apertou o coração, é,
entretanto, a desse fim de outono, um desses dias escuros,
molhados e frios, que dizem que o inverno vai começar, que ele
já está chegando, e que é preciso dar adeus aos belos dias de
sol em que é doce andar lentamente pelas ruas.
Essa estranha manhã do Rio me trouxe a mesma sensação
desses dias sujos, deprimentes, do começo de inverno em
Paris, em que nos dá uma vontade súbita de embarcar para
um Brasil qualquer em que haja luz e calor, em que a gente
possa sair com um calção de banho e andar na praia, ao sol ― o
pobre condenado a meses de capote, cachecol, chapéu, sapato
pesado, ar cheio de fumo e vento frio.
Mas o dia avançou um pouco e, como num milagre, as nuvens
sumiram e veio um sol tão claro e fino sobre a cidade molhada
que a cidade esplendeu no ar limpo, viva como risada de criança.
E, por um instante, surpreendi nas pessoas um olhar novo,
reconhecido, quase feliz, como se tivéssemos saído afinal da
escuridão de um torpe, longo inverno. A cidade renascia com
tanta beleza que dava vontade de fazer como na roça, e a todo
ser humano que passasse dizer, com uma leve emoção ― bom
dia.
Fonte: https://ocjht.mgmonline.online. Acesso em 20/05/2023