Leia o texto a seguir:
Ser quem somos
Se adiássemos a busca do conhecimento e a procura do
belo até haver alguma paz, nem sequer as pinturas rupestres
existiriam
Entre os feitos do britânico C.S. Lewis estão ter sobrevivido às
trincheiras da Primeira Guerra Mundial e ser o autor das “Crônicas
de Nárnia”, cujos sete volumes venderam mais de 100 milhões
de exemplares e foram adaptados para TV, cinema, teatro,
videogame. Em 1939, portanto às vésperas do conflito mundial
seguinte, ele deu uma palestra na Universidade de Oxford. O tema
era uma indagação: “O belo importa quando bombas começam a
cair?”.
A condição humana sempre foi feita de contendas, caos e
dor. Vivemos inexoravelmente à beira do precipício, mas a
cultura também emerge, sempre. Se adiássemos a busca do
conhecimento e a procura do belo até haver alguma paz, nem
sequer as pinturas rupestres existiriam.
— O ser humano propõe teoremas matemáticos em cidades
sitiadas, conduz argumentos metafísicos em calabouços, faz
piadas em cadafalsos e penteia o cabelo em trincheiras. Isso não
é panache; é nossa natureza — argumentou.
A matemática lhe dá razão. Historiadores já calcularam que, ao
longo de toda a trajetória humana, tivemos até hoje míseros 29
anos sem que alguma guerra estivesse em curso em algum ou
em vários pontos do planeta. Atualmente, o portal Rule of Law
in Armed Conflicts Online (Rulac), da Universidade de Genebra,
monitora mais de 110 conflitos armados a espalhar desgraças.
Ucrânia e Gaza são apenas os mais visíveis.
É neste mundaréu atritado que se comemorou, na semana
passada, mais um Dia Internacional da Mulher. Haja fôlego para
ainda precisarmos tanto desse reconhecimento com efeméride,
apesar das distâncias já caminhadas. Boa oportunidade para
querer ir além, alcançar o mais difícil para qualquer bípede:
encontrar a si mesmo. O poeta e.e. cummings (em minúsculas,
como ele gostava) sabia das coisas quando escreveu que “para
sermos aquilo que somos — num mundo que se dedica, dia e
noite, a fazer com que sejamos como os outros —, é preciso
embrenhar-se na luta mais árdua de nossas vidas”. Tinha razão
o poeta, visto que, para alcançar algum grau de autoconfiança,
cabe a cada um construir sua ponte individual sobre o rio da vida.
Como já se escreveu aqui, quase todo ser humano é capaz de
aprender a pensar, a fazer, a saber; mas nenhum ser humano
consegue ser ensinado a sentir. O motivo? Porque, em qualquer
atividade outra que não a sensorial, somos sempre a soma de
outras pessoas, enquanto no sentir somos únicos — somos só
nós mesmos, verdadeiros. E é apenas a partir desse “eu” raiz,
secreto e íntimo, que adquirimos coragens, selecionamos lutas,
armazenamos confiança, arriscamos mudanças.
Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/dorrit-harazim/coluna/2024/03/
ser-quem-somos.ghtml. Acesso em: 10 mar. 2024. Excerto