Antes de responder à questão, leia o artigo
a seguir, de autoria do escritor amazonense Márcio
Souza. Foi publicado no jornal “A Crítica” de 14/01/2007,
na seção “Crônica de domingo”, numa coluna cujo título
era “Mormaço”.
Sim, caros leitores, há uma coisa maravilhosa nesta
terra que ninguém até hoje foi capaz de conspurcar. É o
rio Negro, a quem Manaus pertence, mas não domina.
Somos todos filhos deste rio poderoso, caudatário de
civilizações e muito maior que nossa urbe maltratada e
orgulhosa. A cidade lança detritos e esgotos nas águas
escuras e de lá vem a água que nos serve. De vez em
quando ele se faz presente e invade a cidade sem pedir
licença. O rio Negro é o nosso portento.
Mergulhar nas águas desse rio tinto é como regressar
à placenta materna. Nós, os nativos, sabemos disso há
séculos. Eis porque, ao longo das margens, há tanta gente
a banhar-se, o que não é tão natural no Madeira, ou
Nhamundá, ou Trombetas, muito menos nas solenes
águas barrentas do Amazonas.
O afluente magno do Rio-Mar, que expressa o seu
orgulho numa recusa teimosa em ter suas águas
misturadas, por muitas e muitas milhas náuticas,
correnteza abaixo. É o rio Negro que nasce dos mistérios
minerais das cordilheiras guianenses e desliza-se
turbilhonando em corredeiras vertiginosas, em diagonal
ao subcontinente, para confrontar-se com o rio do Rei
Salomão (Solimões) e formar o rio máximo Amazonas. Rio
de origem de tantos povos, elo de união deste mundo com
outras dimensões, o rio Negro é um traço de união
geográfico a plasmar culturas.
Talvez seja difícil para as psicologias de litoral
marítimo, como é a psicologia brasileira, compreender o
que significa ser ribeirinho, ser filho dos rios poderosos da
Amazônia e crescer numa cultura baseada no ciclo das
águas. Esta dificuldade dos litorâneos, provocada pelas
vertigens marinheiras, faz com que se busque igualar um
rio ao outro, como se tudo fosse a mesma coisa, a mesma
correnteza, a mesma água e a mesmice dos rios em seu
leito. Mas a capacidade de inventar dos rios é infinita, e
somente a observação detalhada é capaz de dar conta de
tanta diversidade.
É por isso que alguns rios se tornam eixos históricos,
referenciais da experiência humana: berços civilizatórios.
O mar é vasto demais e convida à dispersão, inimiga do
processo civilizador. Há, assim, os fulcros civilizatórios do
Nilo, do Mississipi, do Reno, do Volga... e, no grande
planeta dos rios que é a Amazônia, a linha sinuosa do rio
Negro em seu testemunho permanente de tantas
civilizações que ali se cruzaram, se hostilizaram e se
esvaíram no tempo, porque de todos os rios do vale
amazônico o Negro é o mais especial, único.
Nos tempos heroicos, antes dos europeus, suas
águas de veludo testemunharam a glória de grandes
tuxauas. Nações de milhares de habitantes, como a brava
nação Muhra, viviam na boca do rio Negro, dominando as
várzeas férteis e os campos de terra firme que se
estendem entre a margem esquerda, a campina de
Manacapuru, até as alagadiças barrancas do Careiro e
Cambixe. Os Muhras, durante séculos, foram os senhores
daquelas paragens, súditos do reino do encontro das águas. Mais acima, no médio Amazonas, os gentis Baré,
os Passé e os famosos Manaú. E no alto rio Negro, após
as corredeiras letais, o reino do grande tuxaua Buopé e
sua amada Kukuy.
No próximo domingo, enquanto o centro de Manaus
se enche de imundos carrinhos de churrascos (ó Oswaldo
Cruz, em que mundo te escondes de vergonha?) e as
autoridades cruzam os braços, vamos continuar falando
do rio Negro, o nosso rio amado.