Bonitas mesmo
Quando é que uma mulher é realmente bonita? No momento em que sai do cabeleireiro? Quando está
numa festa? Quando posa para uma foto? Clic, clic, clic. Sorriso amarelo, postura artificial, desempenho
para o público. Bonitas mesmo somos quando ninguém está nos vendo.
Atirada no sofá, com uma calça de ficar em casa, uma blusa faltando um botão, as pernas enroscadas
uma na outra, o cabelo caindo de qualquer jeito pelo ombro, nenhuma preocupação se o batom resistiu ou
não à longa passagem do dia. Um livro nas mãos, o olhar perdido dentro de tantas palavras, um ar de
descoberta no rosto. Linda.
Caminhando pela rua, sol escaldante, a manga da blusa arregaçada, a nuca ardendo, o cabelo sendo
erguido num coque malfeito, um ar de desaprovação pelo atraso do ônibus, centenas de pessoas cruzando-se
e ninguém enxergando ninguém, ela enxuga a testa com a palma da mão, ajeita a sobrancelha com os dedos.
Perfeita.
Saindo do banho, a toalha abandonada no chão, o corpo ainda úmido, as mãos desembaçando o
espelho, creme hidratante nas pernas, desodorante, um último minuto de relaxamento, há um dia inteiro pra
percorrer e assim que a porta do banheiro for aberta já não será mais dona de si mesma. Escovar os dentes,
cuspir, enxugar a boca, respirar fundo. Espetacular.
Dentro do teatro, as luzes apagadas, o riso solto, escancarado, as mãos aplaudindo em cena aberta,
sem comandos, seu tronco deslocando-se quando uma fala surpreende, gargalhada que não se constrange,
não obedece à adequação, gengiva à mostra, seu ombro encostado no ombro ao lado, ambos voltados pra
frente, a mão tapando a boca num breve acesso de timidez por tanta alegria. Um sonho.
O carro estacionado às pressas numa rua desconhecida, uma necessidade urgente de chorar por causa
de uma música ou de uma lembrança, a cabeça jogada sobre o volante, as lágrimas quentes, fartas, um lenço
de papel catado na bolsa, o nariz sendo assoado, os dedos limpando as pálpebras, o retrovisor acusando os
olhos vermelhos e mesmo assim servindo de amparo, estou aqui com você, só eu estou te vendo.
(MEDEIROS, M. Coisas da vida. Rio de Janeiro, 2005.)