TEXTO I
TECNOLOGIA
Luís Fernando Veríssimo
Para começar, ele nos olha na cara. Não é como a máquina de escrever, que a
gente olha de cima, com superioridade. Com ele é olho no olho ou tela no olho. Ele nos
desafia. Parece estar dizendo: vamos lá, seu desprezível pré-eletrônico, mostre o que você
sabe fazer. A máquina de escrever faz tudo que você manda, mesmo que seja a tapa. Com
o computador é diferente. Você faz tudo que ele manda. Ou precisa fazer tudo ao modo
dele, senão ele não aceita. Simplesmente ignora você. Mas se apenas ignorasse ainda seria
suportável. Ele responde. Repreende. Corrige. Uma tela vazia, muda, nenhuma reação
aos nossos comandos digitais, tudo bem. Quer dizer, você se sente como aquele cara que
cantou a secretária eletrônica. É um vexame privado. Mas quando você o manda fazer
alguma coisa, mas manda errado, ele diz “Errado”. Não diz “Burro”, mas está implícito.
É pior, muito pior. Às vezes, quando a gente erra, ele faz “bip”. Assim, para todo mundo
ouvir. Comecei a usar o computador na redação do jornal e volta e meia errava. E lá vinha
ele: “Bip!” “Olha aqui, pessoal: ele errou.” “O burro errou!”
Outra coisa: ele é mais inteligente que você. Sabe muito mais coisa e não tem
nenhum pudor em dizer que sabe. Esse negócio de que qualquer máquina só é tão
inteligente quanto quem a usa não vale com ele. Está subentendido, nas suas relações com
o computador, que você jamais aproveitará metade das coisas que ele tem para oferecer.
Que ele só desenvolverá todo o seu potencial quando outro igual a ele o estiver
programando. A máquina de escrever podia ter recursos que você nunca usaria, mas não
tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só aguentava os humanos por falta de coisa
melhor, no momento. E a máquina, mesmo nos seus instantes de maior impaciência
conosco, jamais faria “bip” em público.
Dito isto, é preciso dizer também que quem provou pela primeira vez suas
letrinhas dificilmente voltará à máquina de escrever sem a sensação de que está
desembarcando de uma Mercedes e voltando à carroça. Está certo, jamais teremos com
ele a mesma confortável cumplicidade que tínhamos com a velha máquina. É outro tipo
de relacionamento, mais formal e exigente. Mas é fascinante. Agora compreendo o
entusiasmo de gente como Millôr Fernandes e Fernando Sabino, que dividem a sua vida
profissional em antes dele e depois dele. Sinto falta do papel e da fiel Bic, sempre pronta
a inserir entre uma linha e outra a palavra que faltou na hora, e que nele foi substituída
por um botão, que, além de mais rápido, jamais nos sujará os dedos, mas acho que estou sucumbindo. Sei que nunca seremos íntimos, mesmo porque ele não ia querer se rebaixar
a ser meu amigo, mas retiro tudo o que pensei sobre ele. Claro que você pode concluir
que eu só estou querendo agradá-lo, precavidamente, mas juro que é sincero.
Quando saí da redação do jornal depois de usar o computador pela primeira vez,
cheguei em casa e bati na minha máquina. Sabendo que ela aguentaria sem reclamar,
como sempre, a pobrezinha.
Disponível em: https://www.cronicasdacidade.com.br/tag/tecnologia. Acesso em 2 de janeiro de 2023.