Leia um trecho do romance A cidade de Ulisses, de Teolinda
Gersão, para responder à questão.
Assim que a professora de pintura entrou em nossa casa,
uma nova época se inaugurou.
A vida da minha mãe ficou de repente preenchida, pareceu ganhar magicamente um rumo. Pintar ocupava-lhe os
dias de tal modo que começou a usar um despertador, cujo
alarme tocava um pouco antes de o meu pai chegar. Então,
apressava-se a arrumar tudo, despia a bata e, ao bater do
meio-dia, sentava-se na sala a esperá-lo. Como se sempre
lá tivesse estado, com o coração a bater da correria pela
escada.
Até que um dia o meu pai achou que podia economizar
esse dinheiro, a professora foi dispensada e minha mãe continuou a pintar, por sua conta e risco.
Fascinado, eu exigi desde o início partilhar essa expedição com ela. O tempo que passei naquele sótão foi de longe
o mais feliz da minha infância.
A ideia que guardo é a da casa como um espaço dividido,
o espaço ameaçador do meu pai e o mundo aventuroso e secreto de minha mãe. Passava-se de um para o outro através
da escada: o sótão era um lugar ilimitado, como se boiasse
no ar ou assentasse nas nuvens. A minha mãe estendia na
mesa uma folha de papel e punha ao meu alcance lápis de
cor, pincéis e tintas.
Então tudo começava a ser possível: bastava eu querer
e uma coisa aparecia: o sol, um pássaro, uma árvore, uma
folha. Ela dizia sim, e sorria. Éramos cúmplices e partilhávamos um poder mágico. Estávamos no centro do mundo, e ele
obedecia. Fazíamos o sol subir no horizonte, púnhamos um
carro na estrada, um moinho num monte, pessoas acenando
das janelas. Tudo o que quiséssemos acontecia. Tudo.
(A cidade de Ulisses. Oficina Raquel, 2017. Adaptado)