III
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de
portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se
sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente,
dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de
sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo
anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes
como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro
quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras
palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e
lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se
formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos,
cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na
parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente,
espanejando-se à luz nova do dia.
[...]
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam
vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na
venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os
pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação de respirar
sobre a terra. Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas, fazendo compras.
[...] A fábrica de massas italianas, ali mesmo da vizinhança, começou a trabalhar, engrossando o
barulho com o seu arfar monótono de máquina a vapor. [...] Um carroção de lixo entrou com grande barulho
de rodas na pedra, seguido de uma algazarra medonha algaraviada pelo carroceiro contra o burro. E, durante
muito tempo, fez-se um vaivém de mercadores. [...] Cada vendedor tinha o seu modo especial de apregoar,
destacando-se o homem das sardinhas, com as cestas do peixe dependuradas, à moda de balança, de um
pau que ele trazia ao ombro. Nada mais foi preciso do que o seu primeiro guincho estridente e gutural para
surgirem logo, como por encanto, uma enorme variedade de gatos, que vieram correndo acercar-se dele
com grande familiaridade, roçando-se-lhe nas pernas arregaçadas e miando suplicantemente. O sardinheiro
os afastava com o pé, enquanto vendia o seu peixe à porta das casinhas, mas os bichanos não desistiam e
continuavam a implorar, arranhando os cestos que o homem cuidadosamente tapava mal servia ao freguês.
Para ver-se livre por um instante dos importunos era necessário atirar para bem longe um punhado de
sardinhas, sobre o qual se precipitava logo, aos pulos, o grupo dos pedinchões.
[...]
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 15. ed. São Paulo: Ática, 2018. p. 35-36