A Beleza Total
A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam
diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não
ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do
banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços.
A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes,
por sua vez, perdiam toda capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma
semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa.
O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça
vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma
foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu
destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou
sem condições de vida e um dia cerrou os olhos para sempre. Sua beleza saiu do corpo e ficou
pairando, imortal. O corpo já então enfezado de Gertrudes foi recolhido ao jazigo, e a beleza de
Gertrudes continuou cintilando no salão fechado a sete chaves.
(https://www.cartasabertas.com.br/a-beleza-total-de-carlos-drummond-de-andrade/Carlos Drummond de
Andrade. Acesso em 11 set/2023)