O "cidadão de bem", os Direitos Humanos e a opinião pública
É comum que a opinião pública adote, conforme o quadro social, determinados posicionamentos que predominam
nos populares. Trata-se de uma uniformização de discursos, um consenso entre a maioria dos cidadãos sobre certo
assunto. É evidente que o discurso não é sempre correto. O número de pessoas que fala a mesma coisa não é capaz de
alterar o mundo dos fatos. Em outras palavras, quantidade não é qualidade.
No entanto, desde os primórdios, a intelectualidade gosta de nadar contra a maré. Dizer o contrário do que a maioria
da população diz e acredita já deu causa a diversas descobertas, hoje consensos: antes de Galileu Galilei, a opinião
pública acreditava que a Terra era plana; antes de Copérnico, era a Terra o centro do Universo. Isso não significa,
todavia, que adotar posições antagônicas à opinião pública o tornará um descobridor, um visionário. Há muitas coisas
em que a opinião pública está correta. [...]
Cada dia mais há publicações irônicas acerca do chamado "cidadão de bem", questionando a diferenciação desse com
relação ao marginal. Há muito tempo o conceito de criminoso nato foi abandonado. Não há traços físicos de pessoas
tendentes ao cometimento de delitos. Ademais, qualquer indivíduo está sujeito ao cometimento de práticas
delituosas, uma vez que os dispositivos penais nem sempre refletem o sentimento coletivo ou mesmo individual do
que é, de fato, uma grave transgressão.
Não se pode desconsiderar, todavia, que a prática criminosa reiterada deriva de desvios de conduta decorrentes de
uma formação moral frágil, ou da simples ausência dela. Em uma sociedade, há quem não tenha coragem de subtrair
um alfinete, enquanto outros estão dispostos a matar se for preciso ("1" essa não tão latente quanto possa
parecer).
João trabalha há 30 anos em uma empresa de vigilância. Exerce uma carga horária de 8 horas, de segunda a sextafeira, com uma remuneração um pouco superior a 1 salário mínimo e meio. Já foi assaltado 12 vezes e teve um filho
morto em um assalto a mão armada. Pedro, por sua vez, não exerce função remunerada regular. Tem extensa ficha
criminal, sobrevive com pequenos bicos e roubos a mão armada. Um deles sai à noite do trabalho temendo os altos
índices de violência na cidade em que mora; o outro, é grande colaborador para os índices apontados. É fácil
perceber que a arma nas mãos de um deles seria um exclusivo meio de defesa, para o outro, um objeto para práticas
delituosas.
O disposto a cometer crimes, provavelmente, não se importará de transgredir outra lei penal: adquirirá ilegalmente
uma arma também. Mas quem gostaria de tê-la como meio de defesa respeita as normas impostas pelo Estado e fica à
mercê da criminalidade e da ineficaz segurança pública. Entre João e Pedro não é difícil visualizar qual é
considerado "cidadão de bem" e qual não é.
Se a opinião pública encabeça, atualmente, um movimento cada vez mais punitivista, é porque se cansou de ficar à
deriva, entre um Estado que não o protege (e não o deixa se defender) e uma criminalidade que cresce de forma
exponencial. Ainda assim, toda vez que João liga a televisão, ouve ONGs de Direitos Humanos afirmando que os
presídios estão superlotados; que é preciso desencarcerar; que os apenados sofrem com a opressão do Estado; que
prisão não resolve, porque não cumpre sua finalidade ressocializadora.
É evidente que o indivíduo vê-se exausto de "ver prosperar a desonra, de ver crescer a injustiça" e demoniza os
Direitos Humanos. Não que os Direitos Humanos em si sejam algo negativo, mas as instituições que os representam
atualmente têm deturpado as suas finalidades. Há que se reconhecer o benefício histórico do movimento, sobretudo
quando, em tempos sombrios, o Estado se excedia em face do indivíduo. Mas é preciso ponderação.
Os indivíduos devem deixar de transgredir por princípios morais, mas também por temer as consequências de seus
atos. Se a educação não resolveu, o desvio precisa ser coibido. É preciso prevenção, mas também repressão. Por isso,
a teoria não pode, jamais, desconsiderar a prática. Atacar a opinião pública sem analisar a sua perspectiva é injusto
com quem é compelido a seguir os padrões morais e legais impostos pela vida em sociedade. E talvez o "cidadão de
bem" não esteja tão errado assim...
Hyago de Souza Otto. Disponível em: https://hyagootto.jusbrasil.com.br/artigos/421032742/o-cidadao-de-bem-os-direitoshumanos-e-a-opiniao-publica?ref=topic_feed. Acesso em: 29/01/2019. Adaptado.