O lavrador
Esse homem deve ser da minha idade – mas sabe muito
mais coisas. Era colono em terras mais altas, se aborreceu
com o fazendeiro, chegou aqui ao Rio Doce quando ainda se
podiam requerer duas colônias de cinco alqueires “na beira
da água grande” quase de graça. Brocou a mata com a foice,
depois derrubou, queimou, plantou seu café.
Explica-me: “Eu trabalho sozinho, mais o menino meu”.
Seu raciocínio quando veio foi este: “Vou tratar de cair na mata;
a mata é do governo, e eu sou fio do Estado, devo ter direito”.
Confessa que sua posse até hoje ainda não está legalizada:
“Tenho de ir a Linhares, mas eu magino esse aguão...”
No começo, não tinha prática de canoa, estava sempre
com medo da canoa virar, o menino é que logo se ajeitou com
o remo; são quatro horas de remo lagoa adentro. [...]
Olho sua cara queimada de sol; parece com a minha,
é esse o mesmo tipo de feiura triste do interior. [...] Volta a
falar de sua terra e desconfia que eu sou do governo, diz que
precisa passar a escritura. Não sabe ler, mas sabe que essas
coisas escritas em um papel valem muito. Pergunta pela
minha profissão, e tenho vergonha de contar que vivo de escrever
papéis que não valem nada; digo que sou comerciante em Vitória, tenho um negocinho. Ele diz que o comércio é
melhor que a lavoura; que o lavrador se arrisca e o comerciante
é que lucra mais; mas ele foi criado na lavoura e não
tem nenhum preparo. Endireita para mim o cigarro de palha
que estou enrolando com o fumo todo maçarocado. Deve ser
de minha idade – mas sabe muito mais coisas.
(Rubem Braga. 200 Crônicas Escolhidas, 2001. Adaptado)