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O Marajá
A família toda ria de dona Morgadinha e dizia que ela
estava sempre esperando a visita de alguém ilustre. Dona
Morgadinha não podia ver uma coisa fora do lugar, uma ponta de poeira em seus móveis ou uma mancha em seus vidros
e cristais. Gemia baixinho quando alguém esquecia um sapato no corredor, uma toalha no quarto ou – ai, ai, ai – uma
almofada fora do sofá da sala. Baixinha, resoluta, percorria
a casa com uma flanela na mão, o olho vivo contra qualquer
incursão do pó, da cinza, do inimigo nos seus domínios.
Dona Morgadinha era uma alma simples. Não lia jornal,
não lia nada. Achava que jornal sujava os dedos e livro juntava mofo e bichos. O marido de dona Morgadinha, que ela
amava com devoção apesar do seu hábito de limpar a orelha
com uma tampa de caneta Bic, estabelecera um limite para
sua compulsão por limpeza. Ela não podia entrar em sua biblioteca. Sua jurisdição acabava na porta. Ali dentro só ele
podia limpar, e nunca limpava. E, nas raras vezes em que
dona Morgadinha chegava à porta do escritório proibido para
falar com o marido, esse fazia questão de desafiá-la. Botava
os pés em cima dos móveis. Atirava os sapatos longe. Uma
vez chegara a tirar uma meia e jogar em cima da lâmpada só
para ver a cara da mulher. Sacudia a ponta do charuto sobre um cinzeiro cheio e errava deliberadamente o alvo. Dona
Morgadinha então fechava os olhos e, incapaz de se controlar, lustrava com a sua flanela o trinco da porta.
(Luis Fernando Veríssimo. Comédias para se ler na escola.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. Adaptado)