Uma invenção humana
Vejo a literatura como um instrumento excepcional da
nossa civilização. Ela ajuda a esclarecer o mundo. Quem nós
somos? Quem nós fomos? Lendo a Ilíada , você pode imaginar quais foram os sentimentos de Aquiles ou de Príamo.
Você se pergunta: “Por que esse fervor pela narrativa?”. Porque o ser humano precisou narrar, para que os fatos da vida,
da poética do cotidiano, não desaparecessem. Enquanto
o ser humano forjava a sua civilização, dava combate aos
deuses e procurava entender em que caos estava imerso,
ele contava histórias. Para que nada se perdesse. Não havia
bibliotecas. No caso de Homero, os aedos – e quase podíamos intitulá-los os poetas da memória – memorizavam tudo
para que os fatos humanos não se perdessem. E, assim, a
angústia em relação à apreensão da vida real, o real humano,
visível, intangível, esteve presente em todas as civilizações.
Nas nossas Américas, por exemplo, houve entre os incas
uma categoria social, a dos amautas, que tinha por finalidade
única memorizar. Memorizar para que os povos não se
esquecessem das suas próprias histórias. Quer dizer, a literatura não foi uma invenção dos escritores, gosto muito de
enfatizar isso. Foi uma invenção humana.
Milhões de pessoas já leram Dom Quixote. Milhões, em
diferentes línguas. Mas é o mesmo livro para diferentes leitores. Isso prova que a literatura dá visibilidade a quem somos,
a nossos sentimentos mais secretos, mais obscuros, mais
desesperados, às esperanças mais condicionais do ser humano. E a literatura conta histórias porque os sentimentos precisam de uma história para que você se dê conta deles. Então,
a literatura pensou em dar conta de quem somos, dessa nossa
complexidade extraordinária. Porque somos seres fundamentalmente singulares. E, por isso, a literatura é singular.
(Nélida Piñon. Uma invenção humana – depoimento
ao escritor e jornalista José Castello. Rascunho no
110. Curitiba: 2009.
In http://rascunho.com.br/wp-content/uploads/2012/02/
Book_Rascunho_110.pdf. Acesso em 15.11.18. Adaptado)