O rei da boca-livre
– Preste atenção naquele homem.
Tinha pouco mais de 50 anos, altura mediana, atitudes
discretas e trajes bem passadinhos. Tipo de pessoa que,
mesmo com um guarda-roupa reduzido, não faz feio em reuniões sociais. O referido comia delicadamente um bolinho.
Na direita segurava um copo de uísque.
– Quem é a figura?
– O maior frequentador de coquetéis da cidade. Já investiguei. Ninguém sabe o nome.
– Ora, quem manda os convites deve saber.
– Nunca foi convidado. Lê a notícia dos coquetéis nos
jornais. E numa noite de autógrafos ou vernissage*, quem vai
barrar a entrada de prováveis compradores?
Estávamos na Livraria Teixeira. O homem de identidade
misteriosa armazenara outro uísque numa estante. Colocado
num lugar em que o garçom teria obrigatoriamente de passar,
abastecia-se também de salgadinhos. Não bebia nem comia
afobadamente, portando-se como um verdadeiro cavalheiro.
Não comprou o livro de lançamento, mas o vi cumprimentar o
autor à distância revelando infinita admiração.
Semanas depois vou a uma exposição de pinturas e
quem estava lá, observando as obras de arte? Ele, claro. O
interesse artístico não o impedia de beber uísque e comer
deliciosos pasteizinhos.
Desta vez, a bela festinha era em minha homenagem.
Uma entidade cismara de premiar-me pela publicação de um
romance. Recebi um objeto pequeno como troféu e um cheque ainda menor. Em compensação, quiseram que eu, diante
do fotógrafo, erguesse vitorioso uma taça de champagne.
Pose exibicionista demais. Preferível brindando simplesmente
com alguém. Qualquer um. Vamos lá? Vamos.
Tintim. Choque espumante de duas taças. O primeiro tim
foi meu. O segundo, olhei atônito. Foi dele, sim dele, o rei da
boca-livre! Com um sorriso e uma taça, aproximara-se:
– Não comprei seu livro porque, imagine, recebi dois de
presente.
(Marcos Rey. O coração roubado. Global. Adaptado)
* vernissage: inauguração de uma exposição de arte