Leia o texto para responder à questão.
Éramos quatro escritoras em volta de uma mesa, num
restaurante. A conversa não podia estar mais divertida. Até
que um sujeito passou por nós, nos reconheceu, cumprimentou e disse: “Posso imaginar o papo cabeça que está rolando
aí”. E saiu de perto com uma cara de “Deus me livre”.
O simpático cidadão ficaria corado se escutasse um pedacinho do nosso “papo cabeça”. Logo nos perguntamos:
será mesmo que as pessoas pensam que a gente se reúne
para falar sobre filósofos e que tentamos desvendar o significado de cada verso dos Lusíadas enquanto dividimos uma
pizza marguerita?
Não abro mão de conversas inteligentes, mas, para longas dissertações, existe hora e lugar. Eu mesma, podendo,
corro para o outro lado quando alguém começa uma conferência didática-enciclopédica em mesa de bar. Numa sala de
universidade, é estimulante. Em meio a uma palestra num
auditório, empolga. Escutar um sábio falar durante um jantar,
na casa de alguém, salva a noite. Mas num boteco barulhento, em meio a bolinhos de bacalhau, copos de chope e cercado por amigos da adolescência, quem vai querer escutar sobre a profundidade poética de um brilhante cineasta polonês?
E se for um primeiro jantar a dois, romântico, aí o papo
cabeça funciona mais ou menos como um ex que entrou no
recinto para quebrar o clima. Dá aquela vontade súbita de
pedir a conta.
Em nosso último encontro, minhas amigas e eu conversamos sobre as vantagens triunfais da maturidade, sobre a
diferença da nossa geração para a de nossos filhos, sobre a
viagem que uma de nós fez aos Lençóis Maranhenses, sobre
a Anitta, sobre uma fofoca que aconteceu na cidade, sobre
uma exposição que ainda está em cartaz em São Paulo, sobre paixões infernais, sobre amores inventados e mais outras coisas porque os assuntos são sempre múltiplos e vêm
acompanhados de muitas gargalhadas. Somos criaturas trágicas, mas isso a gente deixa para debater na consulta com o
analista. Fora do horário do expediente, nosso papo cabeça
desce a linha do pescoço, ronda o coração e onde mais a
alma alcança — enquanto isso, o cérebro descansa.
(Martha Medeiros. Papo cabeça. https://oglobo.globo.com, 24.09.2022.
Adaptado)