Mal nos limpamos da areia contrabandeada do Réveillon,
e o ano já chega repleto de propostas de trabalho, estudo,
esporte e lazer. Energias renovadas e um certo erro de cálculo nos fazem crer que as promessas assumidas hoje encontrarão a mesma pessoa para pagá-las amanhã.
Agenda cheia é a marca da pessoa produtiva e plena de
energia, ou seja, eternamente jovem e bem-sucedida. Não
é o caso da mão de obra em uma grande cidade, cujo deslocamento para o emprego ocupa grande parte do dia, da
paciência e da saúde. Essa sonha com tempo livre do qual
não pode dispor, pois seu sustento está sob ameaça perene.
Acostumada a receber convites para dar palestras em
diferentes instituições e sem poder ir a todas, me surpreendi
com uma resposta específica a uma negativa minha. A pessoa queria entender a razão pela qual eu não poderia atender
a solicitação dela que, afinal, ocorreria à noite, só se estenderia por duas horas e era perto da minha casa. Para me
justificar, desfiei o rosário dos compromissos que assumi logo
nos primeiros dias do ano: consultório, aulas, grupos de estudo, livro, coordenação de um instituto. A petulância diante do
meu “não” seria só uma anedota, se não me tivesse percebido tão irritada. Daí, claro, já não se trata da falta de sensibilidade do anfitrião, a quem respondi educadamente, mas de
um incômodo comigo mesma.
Meu mal-estar decorria do fato de eu cobrar de mim aceitar um evento à noite, que só dura duas horas e é perto da
minha casa. Minha resposta apresentando os compromissos
previamente assumidos era para aplacar a fúria de alguém
que se espelha em um fazer sem descanso. Daí que, se quisermos rever uma produtividade que começa logo ao abrir os
olhos com o uso do celular, teremos que dizer “não” para nós
mesmos antes de tudo.
(Vera Iaconelli. A arte de dizer não para si.
www1.folha.uol.com.br, 29.01.2024. Adaptado)