O maçarico
Naqueles longes tempos, ele era vítima de um cirurgião-
-dentista que, de repente do outro lado da sala de café, da
outra extremidade do bonde, da calçada oposta, lançava
intempestivamente o seu vozeirão:
– Como vai a poesia?
Todas as cabeças que se achavam de permeio1
voltavam-se então para o Poeta. O Poeta, nu, desmascarado, em
meio à multidão! Para evitar esses atentados ao pudor, ele
afinal descobriu um meio de fazer a pergunta antes que o
outro a fizesse. Mal avistava o dentista, e antes que o mesmo
erguesse as trombetas da sua voz, que não soavam propriamente como as trombetas da Fama, mas como as cornetas
fanhas da Difamação, bradava o alvissareiro Poeta:
– Como vai o maçarico?
As cabeças de permeio voltavam-se então escandalizadas ou irônicas para o cirurgião-dentista. Não porque fosse
uma vergonha utilizar esse útil instrumento, mas porque maçarico era mesmo uma palavra muito engraçada, uma palavra que rimava com a dança do sarapico-pico-pico e com
surubico. O resultado de tudo isso foi que os papéis se inverteram: o dentista pegou medo do poeta.
(Mario Quintana. Da preguiça como método de trabalho, 2013)
1 permeio: no meio