Sou inimigo de fraudes e falsificações, mesmo pensando
como as fraudes e falsificações podem ser mais encantadoras e melhores do que as ditas coisas autênticas. Quer dizer
que sou inimigo, em parte. Mas sou. E para ilustrar esta aversão, ainda que de um certo modo prosaico e sem arte, poderia invocar os meus não muito velhos tempos de Farmácia
Rosário, quando uma de minhas inveteradas manias era
andar investigando a pureza e a qualidade dos produtos químicos e dos medicamentos, perturbando consequentemente
os bons negócios de pobres-diabos que com eles traficavam.
Era enorme essa minha trabalheira de detetive de laboratório,
policiando, farejando com testes e reações, às vezes durante
dias a fio, o que estava errado com uma ou outra droga. “O
que é que você ganha com isso?” – me perguntavam. Pois
as despesas também não eram poucas. E logo se seguia um
argumento, com ares de campeão do bom senso, aposentado: “Nenhuma farmácia faz assim”. Eu sabia. Nenhuma farmácia fazia assim. E acredito que ainda não faça. Pouco me
importa, entretanto, que não fizesse. Era o meu hábito de não
concordar com descuidos e velhacarias; o meu gosto de pôr
em prática as teorias aprendidas nos livros, de não esquecer
sobre os meus balcões a dignidade intelectual; era a responsabilidade de quem cuida de medicamentos, prepara medicamentos e os entrega depois a seres confiantes, inteiramente
impossibilitados de aí discernir entre o bom e o mau, o nocivo
e o benéfico.
(Jurandir Ferreira. Da quieta substância dos dias.
Instituto Moreira Sales, 1991. Adaptado)