Pra lhes dizer a verdade, não sei onde meu pai arranjou
aquele almanaque, velharia do século passado, e que catalogava os municípios das Minas Gerais, um por um. Tenho
de confessar que, como aquele, ainda não vi outro, tão bem
arranjado e consciente das coisas que deviam ser preservadas para a posteridade. Tanto assim que, além de exaltar as
belezas do lugar e as excelências do clima, descrevia o povo,
listando os vultos mais ilustres, começando, como era de se
esperar, pelos capitalistas, fazendeiros e donos de lojas, passando então aos médicos, boticários, bacharéis e sacerdotes, sem se esquecer, ainda que no fim, dos mestres-escolas.
Lá, bem no começo, seguindo a ordem alfabética, estava Boa
Esperança, terra de meu pai, e ele ajeitou os óculos para
ver se descobria naquele registro do passado a informação
de algum antepassado ilustre, quem sabe alguma glória de
que se pudesse gabar! E o dedo indicador foi percorrendo
o rol dos importantes pelo sobrenome, pois que de primeiro
nome todas as memórias já tinham sido apagadas. Até que
parou. Lá estava. Não podia haver dúvidas. O sobrenome era
o mesmo: Espírito Santo. Profissão: tropeiro. Tropeiro? Isto
mesmo. E com a tropa de burros e o barulho imaginário dos
sinos da madrinha, pelas trilhas da serra da Boa Esperança
que o Lamartine Babo cantou, foram-se também as esperanças de um passado glorioso.
(Rubem Alves, Conversas com quem gosta de ensinar. Adaptado)