O desejo mergulha na luz
Chamava-se Desiderio, mas desconfio que não gostava
muito desse nome. Que nem é feio – em italiano, pelo menos,
quer dizer desejo. Eu só soube por acaso que era também
Desiderio, um dia que pedi a meu irmão para levar uns livros a
ele no hospital. A moça da portaria procurou “Fernando”, não
havia nenhum. Procurou então “Severino”, e lá estava: Desiderio. Não cheguei a perguntar a ele se não gostava mesmo
do nome tão sonoro. Não soube também se chegou a ler O
apanhador no campo de centeio, que eu mandara naquela
tarde. Eu não soube, não perguntei nem disse uma porção
de coisas. Não comemos os camarões do Tirol com o doutor
Eduardo. Não houve tempo. E a gente não sabia disso.
Só o encontrei há poucos meses, no fim da primavera do
ano passado, por intermédio de Marcos Breda, que só conhece pessoas do bem, e com quem ele fazia Bailei na curva.
Nos vimos poucas vezes depois.
Foi nessa mesma tarde que percebi o quanto ele estava
frágil, embora aparentemente normal e bonito como sempre.
Mas parecia vacilar às vezes – só parecia, qualquer coisa nos
olhos, no passo –, como se fosse cair. Não caía. Por trás da
fragilidade física escondia-se uma extraordinária força.
Nos últimos tempos, falamos muito pouco diretamente.
Eu mandava recados, pedia notícias a um, a outro. As notícias eram cada vez piores, e aprendi por experiência própria
que muitas vezes a gente prefere ser deixado a sós com o
enigma do próprio corpo, quando ele começa nos devorar
feroz, incompreensível.
Soube de sua partida numa manhã gelada de inverno.
Eu acabara de voltar de um dos morros aqui perto de casa.
Então, quando me contaram, suspirei assim “que alívio, meu
Deus, que alívio”. Depois conversei com ele pedindo que fizesse boa viagem e não se preocupasse, que nós vamos
tentar continuar cuidando de nós mesmos, que não olhasse
para trás e mergulhasse na luz assim como quem se joga do
alto do trampolim numa imensa piscina azul dentro de uma
manhã alucinada de verão.
(Caio Fernando Abreu. Pequenas epifanias, 2014. Adaptado)