CAPÍTULO XXVII / VIRGÍLIA?
Naquele tempo contava apenas uns quinze ou
dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da
nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo
que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as
mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que
o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas
e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o
rosto nenhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca,
saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário
e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os
fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito
clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos
misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, – devoção,
ou talvez medo; creio que medo.
Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato físico e
moral da pessoa que devia influir mais tarde na minha
vida; era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se
ainda fores viva, quando estas páginas vierem à luz, – tu
que me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre
a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quando
te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a morte
não me tornou rabugento, nem injusto.
– Mas, dirás tu, como é que podes assim discernir
a verdade daquele tempo, e exprimi-la depois de tantos
anos?
Ah! indiscreta! ah! ignorantona! Mas é isso mesmo
que nos faz senhores da Terra, é esse poder de restaurar
o passado, para tocar a instabilidade das nossas
impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa lá dizer
Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma
errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma
edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também,
até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.
(MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias Póstumas de
Brás Cubas. Rio de Janeiro: Ediouro, s. d.)