Prédio novo
Por Ivan Ângelo
Tardezinha, homem vacilando entre a sesta e a
televisão. Ele estava imerso naquela fuga da realidade que é
“assistir sem assistir” à televisão, quando um som de música
absurdamente alta irrompeu em sua sala com guitarras,
bateria, sub woofer, tum-tum-tum, tibum-tibum. Vinha do
apartamento ao lado, entrava pela parede e pelo hall. Recém-instalado
no prédio novo, com vizinhos de hábitos
desconhecidos, o homem temeu por seu futuro. Aquilo durou
uns seis minutos e parou. Concluiu que o vizinho estivera
testando os limites do seu home theater novo. O estrondo não
se repetiu desde então, mas a bomba está lá, armada, pensa o
homem, e não tira da cabeça o temor de nova e mais
demorada invasão de sons infernais.
Vizinhos são assim, incertos como loteria. E prédios
novos são bombas armadas. O barulho é o campeão dos
conflitos. Laje, piso e contrapiso comuns não seguram ruídos
de saltos de sapatos, bolinha quicando, tropel de crianças, som
alto de música ou televisão, movimentação de móveis,
discussões, sopapos. Sábia, a mulher do homem havia
mandado instalar, durante a construção, dupla manta acústica
sob o contrapiso do apartamento de cima e também do seu
próprio, sabendo que as construtoras fazem lajes cada vez
mais finas para economizar material.
Sabia que os sons não são assim dóceis, descobrem
passagens pelos conduítes e caixinhas dos interruptores e
tomadas. Nos prédios de dois apartamentos por andar, as
unidades são espelhadas e muitas vezes as caixinhas de um
lado correspondem a caixinhas do outro lado. No prédio novo,
uma parede separava as suítes principais dos dois vizinhos. A
mesma sábia mulher, ciosa da sua intimidade, mandou mudar
de lugar a caixinha da cabeceira da cama e entupir o conduíte
com lã de rocha.
Com as primeiras famílias já morando, condôminos
começam obras de reforma. Novos proprietários gostam de dar
um toque pessoal ao novo apartamento. Não apenas um toque,
na verdade; gostam de derrubar paredes, trocar pisos e
azulejos, mudar fogão, abrir vãos, bolar teto, ampliar lavabo,
incrementar iluminação. Poderiam ter dispensado o
acabamento no final da construção, mas preferem quebrar tudo
depois que a construtora entrega o apartamento acabado. A
barulheira, o pó e o desgaste dos elevadores duram seis
meses, no mínimo.
Aos poucos, cresce o número de moradores.
Começam os problemas nas garagens. Reclamam que os
fluxos estão errados, as colunas estão erradas, os portões
estão errados, a segurança é precária ... São quatro vagas por
unidade, muitas inadequadas para carros maiores. Logo um ou
outro precisa trocar o jipão por um compacto ou negociar a
vaga ao lado. Uns mais folgados começam a estacionar em
vagas vazias que não lhes pertencem, mais bem colocadas, o
que leva a demoradas discussões nas primeiras assembleias
de moradores.
No dia a dia, constatam que a limpeza está péssima,
os equipamentos da sala de ginástica vivem cobertos de pó, os
brinquedos do playground deixam as crianças imundas, uma
das faxineiras empurra água suja para dentro da piscina ... Ó
céus. Uma assembleia decide terceirizar a limpeza.
Alguns trazem cachorros, claro. Aparece um cheiro
desagradável de xixi no elevador social. Daí a pouco,
descobrem-se outras obras caninas no gramado do campo de
futebol. Assembleia convocada às pressas decide: cães não
podem passear nas dependências do condomínio; nos
elevadores, só no colo. E se alguém trouxer um labrador?
O mais recente problema: uma jovem está fazendo topless na
piscina. Nada ostensivo ou ofensivo. Chega com as duas peças
no lugar, procura espreguiçadeira livre ao sol, senta-se, tira a
peça de cima, deita-se de bruços por uns vinte minutos, sentase
sem tomar o cuidado de guardar as coisas, deita-se de
costas, ajeita male-male a peça solta sobre as graças, cobre o
rosto com o chapéu, fica mais vinte minutos, senta-se, veste a
peça sem pressa, toma uma chuveirada e se vai.
Não há nada previsto quanto a isso na convenção de
condomínio. Cogita-se uma assembleia para discutir o assunto.
Os homens acham que já houve assembleias demais para um
prédio tão novo, fazem corpo mole. Enquanto isso, aproveitam
o verão.
Fonte: Vejinha SP, Janeiro de 2011.