Razão, intuição e um sentido para existir
1 A racionalidade humana é um tema recorrente nas coisas que escrevo, especialmente porque lendo os
autores que mais gosto, vejo que a maioria deles concorda com o fato de que a razão não é algo que nos
torna melhores do que qualquer outra coisa no universo. Na maior parte do tempo, cada um deles me diz, à
sua maneira, que somos tapeados com a sensação de que a racionalidade nos mantém no controle de tudo.
2 Esses dias voltei para a leitura de “Rápido e devagar: duas formas de pensar”, do psicólogo e economista
Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia por seus estudos sobre a tomada de decisões
humanas. Ganhei esse livro faz um tempo, mas abandonei a leitura no começo – e nem lembro agora o
motivo. Nesse livro, o autor explica que existem dois sistemas de pensamento que operam em nossa mente:
o Sistema 1, que é rápido, intuitivo e emocional, e o Sistema 2, que é lento, racional e lógico.
3 O Sistema 1 é responsável por gerar impressões, intuições e sentimentos que influenciam nossas escolhas,
mas também está sujeito a vários vieses e erros de julgamento. É com ele que lidamos com a maior parte das
coisas. E, ao contrário do que o senso comum pressupõe, é com a intuição que fazemos muitas coisas na
nossa vida, desde escovar os dentes até perceber que alguém que conhecemos está triste. O Sistema 2, por
outro lado, é capaz de analisar criticamente as informações, fazer cálculos e planejar ações, mas requer mais
esforço e atenção. Fazer uma conta complicada, pensar em melhorar um parágrafo num texto ou analisar um
argumento complexo são coisas que se encontram nesse campo. Kahneman mostra como podemos usar o
Sistema 2 para corrigir ou moderar as ilusões do Sistema 1, mas também reconhece os limites da
racionalidade humana.
4 No começo do texto eu disse que a maioria dos autores que admiro questionam a centralidade da razão. E
um deles, sobre o qual eu falo sempre, é o filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Ele desenvolveu uma
metafísica pessimista baseada na ideia de que a essência de todas as coisas é a Vontade. A Vontade é uma
força cega, irracional e insaciável que impulsiona todos os seres vivos a existir e se afirmar, mas também os
condena ao sofrimento, à frustração. E isso é ainda mais forte no ser humano, pois, apesar da vida não
possuir nenhum objetivo ou finalidade maior, geramos para nós mesmos a sensação de que esse objetivo
existe, e assim sofremos muito tentando justificar nossas ações e decisões. Schopenhauer considerava que o
ser humano é menos racional do que imagina, pois está submetido à Vontade de viver, que o domina e o
engana. Mas existem algumas válvulas de escape.
5 Schopenhauer afirmava que a única forma de escapar do sofrimento causado pela Vontade era negá-la. Isso
poderia ser feito de duas maneiras: pela via ascética, que consiste em renunciar aos desejos, às paixões e aos
prazeres mundanos, buscando uma vida simples e contemplativa – o que, na prática, é para pouquíssimas
pessoas; ou pela via estética, que consiste em se libertar temporariamente da Vontade através da apreciação
da arte, que expressa a essência do mundo. No momento da criação ou da fruição da arte suspendemos
provisoriamente o desejo, e a Vontade deixa de agir sobre nós. Mas essa trégua é breve, e logo depois
retornamos ao estágio de sofrimento.
6 Relacionando o pensamento de Kahneman e a proposta de Schopenhauer dá pra dizer que o Sistema 1 de
Kahneman corresponderia à manifestação da Vontade de Schopenhauer na mente humana, pois é ele que
nos faz agir impulsivamente, emocionalmente e irracionalmente, buscando satisfazer nossos desejos e evitar
nossas perdas, mas também nos levando a cometer erros e sofrer as consequências. Já o Sistema 2 de
Kahneman corresponderia à tentativa de superar ou controlar a Vontade apresentada por Schopenhauer,
sendo que esse processo se daria, curiosamente, pela razão humana, pois é ela que nos permite avaliar
criticamente as situações, fazer escolhas mais racionais e planejar nossas ações (requerendo, claro, mais
esforço e atenção). Uma contradição nessa tentativa de aproximação se daria justamente por Schopenhauer
considerar que a razão, na maior parte do tempo, potencializa a Vontade. Para ele, muitas decisões racionais
tem, na verdade, fundamento no desejo, no querer, e não na necessidade real daquilo que acreditamos que
é importante para nós.
7 Esse é um tema que me intriga e me desafia, porque essas perguntas (que derivam da discussão) me
parecem sempre sem resposta satisfatória: será que somos capazes de usar nossa racionalidade para nos
libertarmos do sofrimento? Será que existe alguma esperança para a humanidade? Ou será que estamos
fadados a viver em um ciclo de ilusão e dor?
8 Se você adotar a postura pessimista de Schopenhauer, vai concluir que as respostas serão sempre negativas.
E vai entender que a nossa missão nessa vida não é a felicidade, mas sim fazer com que a existência, a nossa
e a dos outros, seja mais suportável. Por outro lado, se estiver do lado de Kahneman, que parece bem mais
otimista (o que, aliás, não é difícil, considerando o autor que coloquei ao lado dele), você vai acreditar que é
possível utilizar a razão não para sermos ainda mais racionais, mas sim para aprendermos a lidar melhor com
as nossas intuições e sentimentos. Com isso, podemos refletir melhor, sofrer menos e viver a felicidade
possível, a partir do autoconhecimento e do reconhecimento de quem somos.
9 Se você me perguntar, vou dizer que sempre pensei mais ou menos como Schopenhauer, mas que quero
acreditar na segunda opção; quero pensar que a razão não é uma outra forma de prisão, disfarçada de
conhecimento, mas sim uma forma de ver e entender a realidade com uma postura crítica que pode nos
ajudar a viver melhor. Não seria bom se fosse mesmo assim?
Extraído de https://marcosramon.net/posts/razao-intuicao/