A questão refere-se ao texto a seguir.
Literatura na escola: menos homens brancos, mais mulheres pretas
José Ruy Lozano
Como tudo que é resultado da percepção humana ao longo do tempo, o cânone literário – conjunto
de livros considerados referências de uma época ou cultura – tem mudanças e permanências. Mas não há
dúvida quanto ao papel fundamental que o ensino de literatura nas universidades e escolas desempenha em
sua constituição. Afinal, à chancela acadêmica dos estudiosos une-se a difusão da leitura de obras
consideradas clássicas realizada na educação básica. Notoriedade e prestígio juntam-se ao conhecimento
mais amplo do público leitor por meio das instituições de ensino.
Tais instituições não são refratárias ao momento político e social em que estão inseridas. Em tempos
de Black Lives Matter, identitarismo e questionamentos mais frequentes e profundos a respeito do racismo
estrutural no Brasil e no mundo, percebe-se um movimento de deslocamento do cânone literário rumo a vozes
até aqui marginalizadas em nossa literatura. Para muitos surpreendente, a inclusão das letras de
sobrevivendo no inferno, disco do grupo de rap paulista Racionais Mc’s, como leitura obrigatória no vestibular
da Unicamp demonstra que os tempos estão mudando.
Ainda não cancelaram José de Alencar – escritor que defendeu publicamente a escravidão e
organizou um retrato idílico das populações indígenas conveniente ao Estado imperial de sua época –, mas
os homens brancos do passado já têm de abrir espaço não só a outros homens, mas também a mulheres
pretas, do passado e do presente. A indicação de obras com essa marca de autoria por exames vestibulares
de universidades públicas e particulares está obrigando as escolas a se abrir a vozes distintas, e os alunos
passam a ler narrativas que se aproximam de seu mundo, marcado pela desigualdade, pobreza e
discriminação.
Passo determinante nessa trajetória é o resgate de Carolina Maria de Jesus. Seus diários, que
retratam o cotidiano de mulher negra e favelada, apresenta aos estudantes um universo literário bem distinto
dos clássicos de costume. Quarto de despejo passou a ser indicação obrigatória de leitura em vestibulares a
partir de 2016, e muitos professores de literatura de Ensino Médio tiveram de “descobrir” uma escritora
brasileira cuja obra já foi traduzida para catorze idiomas desde os anos 1960. Em 2020, Carolina consta na
lista de leituras dos exames das universidades estaduais de Maringá, Londrina, Ponta Grossa e da
universidade federal do Tocantins.
Conceição Evaristo, premiada romancista, poeta e contista mineira, nasceu em uma comunidade
pobre de Belo Horizonte, trabalhou como empregada doméstica, até concluir sua formação como professora.
A discriminação racial e de gênero são temas recorrentes de sua ficção. Militante do movimento negro,
apresentou em 2018 uma simbólica candidatura à vaga número 7 da Academia Brasileira de Letras, cujo
patrono é o poeta abolicionista Castro Alves. Se essa tentativa de diálogo com a instituição canônica por
excelência da literatura brasileira não teve êxito, sua presença nos estudos literários veio para ficar: a
universidade de Passo Fundo indica a seus candidatos a leitura dos contos de Olhos d’água, e a universidade
federal do Rio Grande do Sul incluiu em sua lista de leituras obrigatórias o romance Ponciá Vicêncio.
Ainda no vestibular da federal gaúcha, consta o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. A
maranhense Firmina foi precursora na vida e na obra. Mulher negra, prestou concurso público para professora
e sustentava-se sozinha. É dela o primeiro romance de autoria feminina do Brasil, justamente Úrsula,
publicado em 1859, que também é considerado a primeira narrativa abolicionista da literatura brasileira,
humanizando e dando voz aos escravizados. Embora tenha tido destaque na sociedade maranhense em sua
época, foi silenciada e esquecida, mas hoje recebe merecido destaque, tendo sua obra principal reeditada
pela PUC de Minas Gerais e ganhado atenção de pesquisadores que constroem sua fortuna crítica.
A Universidade Estadual do Rio de Janeiro selecionou, para seu exame de acesso, a obra de uma
mulher negra, nascida em 1977, na periferia de Nova Iguaçu, conhecedora do cenário de pobreza e violência
de onde provêm boa parte de seus estudantes. Na UERJ, 50% das vagas são reservadas para alunos de
escolas públicas do estado, tendo sido essa universidade a pioneira do regime de cotas raciais e sociais no
Brasil. Assim na terra como embaixo da terra, de Ana Paula Maia, elabora um cenário distópico em que um
presídio de segurança máxima, construído sobre terreno que outrora abrigara local de tortura e morte de
escravos, torna-se um campo de extermínio. Ali se entrevê uma alegoria das mazelas da atuação policial e
do sistema prisional brasileiros, vinculados a um passado histórico de opressão.
Não só gênero e raça se mostram mais diversos, mas também a nacionalidade. A Universidade
Federal de Uberlândia fará questões em seu vestibular sobre o romance A cor púrpura, da norte-americana
Alice Walker. Militante feminista e do movimento negro, Walker retrata no livro as agruras de uma menina
negra, no sul agrário e racista dos Estados Unidos, abusada sexualmente pelo pai – de quem engravida e dá
à luz dois filhos – e, posteriormente, obrigada a se casar com um senhor branco que a trata como empregada. A narrativa de estupro em família, num contexto de preconceito e pobreza, guarda estreita relação com
situações semelhantes infelizmente frequentes no Brasil.
A universidade de Taubaté, interior de São Paulo, inseriu em sua lista obrigatória de leituras o
livro Hibisco roxo, primeiro romance da feminista nigeriana Chimamanda Nzozie Adichie, que narra conflitos
familiares na Nigéria pós-colonial, tematizando a misoginia associada ao fanatismo religioso. Escritora
premiada, ensaísta e palestrante de sucesso, Adichie já teve trechos de suas falas inseridos na letra da
música Flawless, da popstar Beyoncé.
A vida das periferias, pobreza, racismo, violência urbana, machismo... A entrada de vozes femininas
e negras no ensino de literatura amplia as temáticas abordadas em sala de aula e aproxima as leituras
escolares da realidade vivida por milhões de estudantes no Brasil. Diversidade fundamental por si só, esse
fenômeno representa uma oportunidade valiosa para os educadores: despertar nos estudantes o sentido e o
propósito do fazer literário, ressaltando a importância das narrativas como construção da memória coletiva.
Disponível em: < https://diplomatique.org.br/>. Acesso em: 08 dez. 2023. [Texto adaptado]